12.8.08

Casanova

Acabo de ver um filme chamado Memórias de Casanova, ou só Casanova, vocês sabem como são essas coisas. E preciso dizer - só escrevo aqui coisas que preciso dizer - que terminei o filme revoltado, esbravejando pra pessoas intrigadas com atitude tão bizarra diante de um filme bobo.

Meu problema com o filme era apenas o enredo. Achei o figurino adequado, as intepretações críveis e o cenário bem-construído (afora uma ou outra marcas de avião no céu veneziano do século XVIII, quando não se arava ainda o céu). Apenas o enredo, qual seja, segundo a wikipedia:

"Casanova, pela primeira vez na vida, encontra uma mulher que o rejeita. Ela é a bela veneziana Francesca Bruni e, para conquistá-la, Casanova usa os mais variados disfarces e estratégias, colocando em jogo sua reputação e até mesmo a sua vida." (devo dizer que existe um filme do Fellini e que obviamente não é o que interessa)
Vocês entenderam então? Casanova, o libertino, Casanova, o maior dos sedutores, Casanova, o destruidor de corações (não de famílias, nessa época não tinha dessas em Veneza), se apaixona, que é a forma polida de dizer: encontra uma mulher que o rejeita (não estou igualando as duas coisas, por favor - mirem mais embaixo). E então faz o possível e o impossível para tê-la, abdica dos seus amores e até de deflorar a virgem que lha daria uma aparência digna e lhe salvaria o pescoço da inquisição.

Me corrijam aqui todos os semioticistas, todos os psicanalistas, todos os filósofos e todos os lógicos se eu estiver errado: o Casanova hollywoodiano deixa de fruir o presente e é dominado pelo amor Shakespeariano, aquela abdicação do presente pela fruição do futuro (que, como o inglesinho apontou, identifica-se com a vida eterna e portanto com a morte). Permanece perseguido, vejam bem, como se houvesse uma continuidade entre uma coisa e outra.

Mas não há. Há é a grande inversão do mito, que passa a propagar assim : o maior dos conquistadores não era um conquistador, mas no fundo um infeliz frustrado ; a fruição dos seus desejos ainda não é a felicidade ; a verdadeira felicidade está em outro lugar, no inatingível, ali, e não no que você está fazendo agora ; é preciso estar frustrado, há algo além pelo que vale a pena lutar, usar todos os disfarces e estratégias ; cuidado, pois pode não ser pra sempre e, se não for pra sempre, retroativamente isso significa que não deu certo.

Não é ainda que o libertador se converteu na prisão. É mais primitivo: a prisão se apresentando com um cartão onde se lê, "Libertador".

***

Uma vez o Blattner me disse sobre a Montanha Mágica que o sujeito estava deitado no quarto da amada vendo entrar a luz da manhã, e que ele então pensava que aquilo era apenas a ponta do enorme iceberg da felicidade, quando na verdade aquele momento era a própria felicidade. É isso. O filme nos treina para procurar o iceberg, e nos deixa muito inquietos quando não conseguimos nem mesmo vê-lo, pois estamos ocupados demais admirando a ponta. Que ao menos tirássemos fotos da ponta, para poder fruí-la pra sempre.

Vi também admirável mundo novo outro dia em filme, a mesma mensagem : na verdade o Amor existe e os seres do futuro é que foram privados dele, até de Shakespeare, ah Shakespeare que nos diz tanto. Nosso mundo, e não o deles, é que é o único possível, diz o filme. Espero que o livro não seja assim - 1984 certamente não é, embora tentem fazer dele um apaixonado tratado de anti-stalinismo.

O saldo, que apresento como a novidade da temporada : Hollywood é uma máquina de pegar histórias e transformá-las em comerciais da tesoura do Mickey e da Minnie, lembram dela? De te garantir que existe um mundo do depois-de-conseguir, um mundo muito melhor, onde finalmente você estará a salvo, sem dor e sem remorso e ao lado dos que te amam, onde tem prostitutas bonitas para a gente namorar.

Sinto dizer, mas esse mundo tem nome, e é o Além. Chegar a ele demanda a morte.

1 Comments:

Blogger Mauricio Schuartz argúi...

é Gegê,
eu tenho, vc não tem! Bem vindo à grande máquina de desilusões...
"What came first, the music or the misery? People worry about kids playing with guns, or watching violent videos, that some sort of culture of violence will take them over. Nobody worries about kids listening to thousands, literally thousands of songs about heartbreak, rejection, pain, misery and loss. Did I listen to pop music because I was miserable? Or was I miserable because I listened to pop music?" A comédia romântica é pelo menos dez vezes mais destruidora que o "pop"...

terça-feira, agosto 12, 2008 9:50:00 AM  

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