23.9.08

Dia 6

Bem, eu sabia que devia ter escrito pra vocês no dia 3. O que aconteceu foi que nesse dia, quando cheguei em casa, havia questões mais importantes esperando pra serem resolvidas. E, como vocês claro sabem e compreendem, na vida é preciso ter prioridades.

Tento reconstituir (reencarnar, como alguém disse numa prova e foi considerado um insulto à língua): no dia 3 estava meio mal. Ninguém havia me telefonado apesar dos onze currículos distribuídos com efusivos apertos de mão. Então, e apesar de a teoria da equivalência das janelas ter se mostrado mais forte do que nunca, eu estava meio mal. Porque havia percorrido muitos outros bares e restaurantes e só parecia haver negativas, como se as portas da lei estivessem fechadas para mim exceto se eu mostrasse toda a minha ficha corrida nobre e enobrecedora. E havia inclusive sido sacaneado por um gerente, não pelo meu francês ruim mas vejam vocês pelo meu francês coloquial demais, street demais - isso deveria ser de alguma forma motivo de orgulho, não? Pois não foi. Entrei no personagem por assim dizer, eu pensava, eu podia precisar disso, e depois pensava na minha conta e dizia, quem estou querendo enganar?, eu preciso disso, e depois pensava nas minhas mil outras opções etc etc.

Ainda por cima uma amiga francesa tinha sugerido que eu fizesse uma carta de motivação, quer dizer, uma folha A4 em que você explica em uns poucos parágrafos por que sempre quis ser garçom, é a pessoa perfeita para o trabalho e trabalhar na [_instert company name_] realizará todos os seus sonhos e contribuirá decisivamente para o sucesso do bar ou restaurante-alvo. Acrescentou que eles acham legal quando a carta é manuscrita.

Evidentemente, isso havia tocado num ponto sensível. Quer dizer, uma coisa é defender empresas de tabaco contra pessoas que estão no leito de morte, outra coisa é sentar durante duas horas e redigir manualmente cartinhas individualizadas para bares turísticos explicando que nada te faria mais feliz do que segurar uma bandeja 35 horas por semana e ser compreensivo com pessoas que não falam nenhuma língua conhecida. Era subserviência demais. Contra os meus princípios.

E ainda, ainda uma grande amiga e minha irmã, minha própria irmã, já na noite do dia 3 me diziam pra ceder, pra escrever as tais cartinhas que não tinha nada demais. Realmente, por exemplo: o seu banco não te manda cartões de Natal personalizados?, às vezes assinados de próprio punho pelo seu gerente? É semelhante: é preciso saber como as coisas funcionam.

Isso foi o dia 3. E a melhor dica que tive, aparentemente, foi a de dizer a verdade. Que quero sentir qual que é, feel the thrill, just for the kicks. Porque foi o que fiz hoje. Ia naquela pracinha da Rue Mouffetard onde tem a Haagen-Dasz (?, não vou googlear) beber com um amigo que encontrei vezes demais nos últimos dias pra ser coincidência, ele atrasa ainda por cima, e vagando um pouco vejo uma placa: "CHERCHE : SERVEUR OU SERVEUSE - S'ADDRESSER À LA CAISSE".

Vou até o caixa e peço informações, digo que não estava lá pra isso e não tenho nenhum CV comigo mas que sim, que moro perto e posso ir buscar. Ando até em casa, pego 3 cópias pro caso de não dar certo e volto pro lugar. Explico, como sugereiram, a verdade: que acabei de terminar um Master, que sou gringo e que vou passar os próximos meses lendo no meu quarto pra minha tese, e que gostaria de ter um trabalho à noite (omito que ele durará exatamente um mês), pra falar francês do dia-a-dia e ganhar um pouco de dinheiro.

O gerente pergunta se sei trabalhar com bandeja. Pego na mão uma que está ao lado. Ele me pergunta se já fiz isso, e decido dizer a verdade: que trabalhávamos mais com copos individuais, como num pub. Ele diz que é pra saber se precisa me formar ou não. São 60 euros por noite, as gorjetas são minhas, chega-se às 16h30, come-se alguma coisa e trabalha-se direto até às 2h, sextas e sábados até às 4h. É preciso estar de camisa branca, gravata preta, calça preta e sapato preto. Importante ter uma pochete (na verdade, achei que era um avental, descobri depois que era uma pochete). Ele me empresta se não tiver. Farei um dia de teste, e depois vemos.

Saio com um papelzinho com as indicações e vou encontrar umas pessoas que nem conheço. Estou contente demais com essa coisa estúpida e tenho que me esforçar pra não ser inconveniente. Ficar feliz por trabalhar em Genebra, na OMC, realizando estudos fantásticos e negociando grandes somas internacionais, seria uma coisa. Ficar feliz por ser aceito como garçom, pra trabalhar mais que o limite legal e receber o salário mínimo, sem direitos, é um pouco outra.

Mas ah, como me alegra. Nem que seja só o dia de prova - mas me esforçarei tanto que não poderão me recusar! Vocês vão ver.

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2 Comments:

Blogger Unknown argúi...

retiro minha pergunta sobre a dificuldade de conseguir emprego como garçom na frança! gracildo

terça-feira, setembro 23, 2008 7:58:00 PM  
Anonymous Anônimo argúi...

É tão bom ver nossos amigos realizando seus sonhos!
Você parece um cara saído do Clube da Luta, Gegê, e isso conta como elogio (só não conte pro dono).
Continuamos acompanhando.

quarta-feira, setembro 24, 2008 12:30:00 AM  

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