O flamenco e o tango
Eu ia começar com uma citação. Não se desesperem contudo, não era nada que fosse necessário saber ou que fosse fazer bonito na Vila Madalena – inclusive lá no alto, onde ainda nos cremos seguros liderados por um prosador pop, mal sabemos. Era uma citação da Glória Kalil ou da Danuza Leão, ou de qualquer outra dessas pessoas que se lêem na casa dos outros. Ia como assim: "Mulheres mais jovens devem evitar acessórios em dourado, batom e maquiagem em tons fortes, que podem ser usados por mulheres mais maduras. Nas meninas, deve sobressair a beleza; nas mais velhas, a elegência."
Mas lógico que procurando "beleza" e "elegância" juntos no google, encontro milhares e milhares de artigos com as duas palavras associadas, e nunca em relação de oposição. É preciso uma sensibilidade de mulher de meia-idade para separar coisas que o turbilhão das delícias quer nos fazer engolir numa só colher. E isso mesmo levando em conta a generalização generosa feita pela colunista, no caso, porque há algo de verdade muito forte no que ela diz.
E é claro que transpor essa relação para as sociedades é uma aventura muito perigosa, porque é incorrer num erro do século dezenove. Posso dizer contudo que, dadas as condições atuais, é preferível estar errado com o século dezenove do que estar certo com o século vinte - assim como se deve ponderar bem a irrazoabilidade do século vinte antes de mergulhar no razoável século vinte e um. Aulas de contabilidade nunca foram para nós.
Porém a proposta é simples, e pode ajudar a responder a questão que ficou pendente, como sempre com uma frase pretensamente reveladora cuja função é menos definir do que passar adiante a dúvida : a Europa seduz pela acumulação; a América, pela nudez.
Em lugar da dançarina de flamenco e do casal de tango, eu poderia colocar o can-can contra a globeleza, as saias, vestidos, faixas e casacos contra a barriguinha de fora, o blazer contra o supino. Pra não entrar em arquitetura, tesouros nacionais etc. O que se vende de um país diz muito sobre o que ele é, embora não seja a mesma coisa que o que ele é. Ah, isso de jeito nenhum.
Daí as pessoas poderiam me lembrar da existência de Campos do Jordão, dos edifícios neoclássicos da Berrini ou da moda da superposição de roupas para me dizer que não é exatamente verdade. Deste lado, há no verão a Paris plage, com areia na borda do Sena, e na frente da prefeitura tem agora um 'bosque transitório' ou coisa assim: sobre o pavé, as árvores. Mas o resultado triste das sociedades que tentam exercer a função que não lhes corresponde na ordem das coisas equivale com precisão ao desastre da menina de doze anos dentro de uma meia arrastão e manchada de batom vermelho, ou ao das senhoras de biquini em Copacabana, quarentonas com os cabelos na cintura e etc. Lembram o que aconteceu quando povoaram de plátanos o Rio de Janeiro?
Acho que é isso o que eu quis dizer quando falei no estilo americano de um blog, contraposto ao estilo europeu. Sintomaticamente, vou ficando cada vez mais americano, isto é, mais nu e menos salpicado de acessórios para dar uma certa aura de antigüidade, como quem desiste de discutir o conceito de Aufhebung e pensa mais nas coisas que aconteceram na madrugada em que o metrô não fechou – e daí para pensar que é precisamente nesses interstícios em que as coisas não funcionam como estamos acostumados, quer dizer, como deveriam, que a natureza exata delas é revelada.
Sempre guardei esta citação para um texto maior e mais importante, mas como pode ser que ele nunca venha, solto aqui. Onde dessas duas regiões do mundo alguém poderia recitar assim:
« But you made me feel
yeah you made me feel
shiny and new »
***
P.S.: Acabo de ver a segunda mulher de barriga de fora em dois dias. É verão em Paris. Adivinhem que língua as duas falavam:
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