15.7.08

Kafka e a língua tcheca (esboço sobre o erro)

Uma das coisas mais significativas sobre o formato blog é que ele abre um espaço enorme para o erro. Você redige às pressas, dá no máximo uma relida rápida, publica e vai fazer outra coisa. Daí depois, quando se relê (e eu inevitavelmente me releio) se dá conta que escreveu Íris em vez de Ísis, ou que usou uma fórmula bárbara tipo "sociedades que tentam exercer a função que não lhes corresponde na ordem das coisas", que em outra pessoa te faria desconsiderar no mesmo instante todo o resto das mensagens. E sempre dá pra corrigir, mas quase nunca a tempo, o que pra todos os efeitos quer dizer quase nunca.
Daí meu problema: a questão toda é que não sei se o erro deve ser tratado como erro, como engano, coisa que deve ser corrigida para que o mundo volte a girar na perfeita ordem relativista e desenvolvimentista. Pois penso que um dos grandes acquis do século XX foi exatamente a possibilidade de tratar o erro como lapso - como falha, se quisermos ser geógrafos - como aquilo que, não sendo o mais desejável do ponto de vista do ego do emissor, tem a função de revelar aquilo que uma versão final corrigida, aplainada, esterilizada nos dois sentidos, ocultaria; aquilo que, freqüentemente, era o mais importante na história toda.
Outro dia ainda tive uma conversa sobre séculos, e falava sobre os artífices do século XX quando um outro - e ele se chamava, não estou brincando, David Marx, estudante de medicina - me fez a mesma observação que eu mesmo fiz, nove anos atrás: e por que não Einstein?, não seria ele o D'Artagnan dessa história? E recebeu uma resposta ainda menos satisfatória do que eu há nove anos, de que Einstein se encaixaria já plenamente no século XX e por isso seria um desenvolvimento, num campo aliás muito específico, dos progressos alcançados pelos demais.
Ignoremos a questão cronológica, isto é, de saber se 4 ensaiozinhos escritos a partir de 1905 contam como já no século XX ou se devemos encaixá-los como é uso dos tempos no século XIX. O fato é que se esse judeu alemão (não pensem que não fiz eu também a piada de que ele queria aumentar ainda mais a proporção de judeus no grupo) não criou, soube romper com a doce regularidade musical newtoniana, e no lugar popularizar essa mesma visão anti-vitoriana e anti-racionalista dos demais, essa visão mais funda que faz emergir o erro não como um defeito do processo mas como parte essencial do processo, sem a qual não há movimento, não há espaço, não há tempo, não há o processo. A harmonia simplesmente não o é.
E isso é fundamental, em especial para a arte. Porque alguém poderia levantar o braço e bradar: não me apregoem sistemas completos. Mas eu digo que toda arte é totalitária, e todo artista, um totalitarista. E aqueles que passam a vida tentando provar a impossibilidade de reduzir qualquer dado da realidade a um único ponto de vista apenas realizam a demonstração disso na sua forma mais crua, isto é, ainda estrebuchando.
Pois essa construção do século XX nos fez perceber essa necessidade do erro, essa, um filósofo poderia dizer, importância ontológica do erro, e integrá-la às nossas visões totalitárias. E que terminássemos então com um sistema em que, para acrescentar mais nomes à salada, a desgraça é darwinianamente - ou, se quiserem schumpeterianamente - fonte de evolução, progresso e desenvolvimento sustentável. E arrisco que dentre as coisas mais belas que foram feitas nesse século, muitas devem tudo ou quase tudo a essa estúpida constatação, a essa opinião, a essa impressão, a esse engano, que seja.
O problema é que eles não tardaram a nos caçar, nós que venerávamos o animal errado, que observávamos abismos, que saltávamos de lugares altos apenas para testar a falha em nós mesmos. Porque eles perceberam o que estávamos fazendo, e vieram à carga. E nos neutralizaram - provavelmente, apenas nos ensinando sobre a Curva de Gauss e sorrindo na saída.
E substituíram a importância ontológica do erro pela sua importância estatística. E tornaram nossos deuses subitamente desprezíveis. E ainda não sabemos como sair dessa. Só não queremos esperar outro século.