3.11.08

Superação

Minha idéia de superação vem de observações simples. Como quando não havia astrolábios mas o sujeito ia lá, olhava o poço da vila, subia num camelo e calculava o tamanho da terra. Errado, do ponto de vista de quem precisa lançar um míssil nuclear sobre um país e não sobre o país vizinho, mas não é esse o ponto. Por isso previno: não liguem para o título, é uma provocação.

Uma coisa que se observa facilmente é o quanto repudia a uma criança de doze anos tudo aquilo que lhe parece próprio a uma de dez. Ela está inclusive pronta a humilhar os colegas menores que têm práticas exatamente iguais às dela própria pouco tempo antes. Porém a mesma relação não se observa em relação a crianças tão menores que o maior não se sinta secretamente atraído por aquilo, ou seja, contaminável. Daí que, quando ele tiver quinze, repudiará o que le parece próprio dos de doze e assim por diante, até que se torne indiferente em relação a tudo o que é infantil - como coisa que existe e tem seu lugar, mas não mais lhe pertence nem lhe ameaça.

É claro que essa observação tem pouco a ver com crianças. É inclusive mais fácil de notar em coisas como o gosto musical de adultos, por exemplo: o que se descreve como odiando determinado movimento apenas revela um certo medo de ser associado a ele. Provavelmente, se você perguntar para o Hobsbawn ou o Medaglia que música, dentre umas quatro ou cinco escolhas bem-postas, lhes parece melhor ou pior, farão uma escolha que pode dar preferência ao que é menos incômodo aos ouvidos, ou então tentar ser compreensivos e fazer uma escolha de cultural studies - privilegiando o que vem de cenários exóticos como a periferia das grandes cidades latinoamericanas ou o meio rural brasileiro. Mas se manifestarão sem grande emoção, buscando compreender (e vejam a lonjura até onde alcança esse verbo) as várias manifestações que estão subentendidas e talvez até limpar o terreno com uma vassoura num esforço para encontrar algo que brilhe.

Poderia falar também de uma concepção que tenho aqui sobre o vegetarianismo contemporâneo - nada a ver, evidentemente, com os indianos que desejam purificar o corpo. É de uma certa forma apenas a conseqüência imediata de uma geração que nunca viu a avó degolar galinhas no quintal, que nunca viu abater uma vaca e que descobre horrorizada, aos doze anos, que o pacotinho com sanguinho no supermercado já foi um bichinho! E não consegue encarar aquilo como parte do mundo, mas como algo que fizemos no passado e que, se ainda fazemos, não é por nossos estômagos e sim por estarmos atrasados. Depois há todo o discurso sobre os dez por cento de energia, mas na base é apenas o horror do ciclo da vida, que aparece em vídeos do youtube para uma geração que nunca viu uma cobra matar um sapo.

Não preciso extravasar e falar da luta sem trégua que se trava no Brasil entre os inimigos da ditadura militar e os inimigos da União Soviética - duas coisas que, como lembra com freqüência o Urso, já terminaram. Obviamente, nenhum dos contendores está disposto a reconhecer estar sozinho no ringue errado, e faz grandes esforços para demonstrar cientificamente que estrebuchamentos são sinais de vida afinal de contas. Não, é possível ser mais rasteiro.

Na frente do Parlamento inglês, por exemplo, há uma estátua do Cromwell. Da qual ninguém dirá, como fazia meu Lonely Planet com as estátuas de Lênin, que é uma relíquia mórbida e que deve ser removida. Na França, por outro lado, não se encontram estátuas de Robespierre, por exemplo, enquanto todas as igrejas depredadas durante a revolução estão sofrendo grandes trabalhos para se parecerem com aquilo que gostaríamos de ter como fundo em nossas fotografias de viagem. O que diz muito sobre estarmos no país de Debord, afinal de contas.

No Brasil, não consigo pensar num só lugar onde encontrar estátuas das figuras mais interessantes de nossa história - o que quer dizer, no mínimo, que estão envergonhadamente longe da Paulista, da Sé, do Planalto e do Arpoador. Temos medo de todos, como crianças que ainda não superaram: de Antônio Conselheiro, de Domingos Jorge Velho, de Lampião, de Zumbi, provavelmente em São Paulo mesmo de Getúlio Vargas. Somos capazes de pagar para que as pessoas perdoem, mas não de levantar um monumento decente a Marighella, mais que uma pedra no caminho. Há, é claro, aquela estátua (feia, enfim, não é essa a questão) do Borba Gato no fim da Nove de Julho. E temos o Deixa-que-eu-empurro, que homenageia assim coletivamente os fundadores da cidade, sem muito escolher lado e sem botar a cara de sujeito nenhum pra bater. E, se escolher, já vem a turma do Terra em Transe: - Extremista, extremista! Talvez os gaúchos sejam os únicos capazes de ter/deixar seus heróis em paz, o que diz bastante coisa sobre a República dos Pampas. Há até estátua de Garibaldi em Porto Alegre, assim como na Argentina, na Rússia, por toda a Itália, na Hungria e em Nova Iorque. 

Isso tudo pra dizer que o sinal da superação virá quando conseguirmos falar dessas pessoas todas, não como quem escreve estadunidense acreditando fazer seu voto de protesto, mas como quem entende, ao olhar brincar uma criança de dez anos, que não há ameaça de retorno, e compreende aquilo como algo que também está em nós, que nos forma e - mesmo como erro - constitui.

E, antes da pedreira destes outros todos, talvez haja uma figura bem menos difícil que precise ser melhor assimilada (outro verbo que escorrega perfeitamente de um lado a outro), porque - e isso é muito importante - nem isso fomos capazes de superar no Brasil. Trata-se do indivíduo que, fundado no mais puro acaso, por mais tempo governou o país, e que fez grande parte das escolhas (e não-escolhas) que determinaram o que somos hoje. Trata-se do nosso último imperador. É preciso reconhecê-lo e, talvez mais importante, revisitá-lo.