Um recomeço
Havia muitas maneiras de recomeçar. Uma defesa apaixonada daqueles que passam a vida trabalhando onze horas por dia, atravessada de considerações sobre a capacidade humana de a tudo se adaptar; uma explicação de certo mau gosto sobre o estado das finanças e como conseguirei finalmente viajar um pouco em novembro, sem gastar a mais que o planejado; uma confissão de fracasso simplesmente, que mal disfarçaria o retorno à confortável situação dos que têm o privilégio - no sentido francês da palavra - de trabalhar sentados.
Porém, como de costume, trapaceio.
Porém, como de costume, trapaceio.
***
Al Chavo del Ocho
Como explicar-lhes a alegria surda
de um mundo que permanece?
Onde as pessoas não se mudam,
não casam, e os meninos
são sempre meninos.
A antiga paixão, pouco nos importa
se é correspondida ou desdenhada,
diante da certeza de que amanhã,
ao acordarmos, ela ainda estará lá.
Queremos garantias
de que a moda é em vão,
de que a todos é permitido passar anos
com um único vestido, pobre ou rico,
como se nunca houvesse um evento planejado,
como se cada dia fosse igualmente
alegre ou triste, e cada noite
igualmente iluminada.
Exigimos que os vagabundos possam
permanecer vagabundos, que os
proprietários tenham sempre pena
e que todos os atropelamentos
não passem de imaginação das crianças.
Pedimos a abolição de toda morte
que não seja boato, que todos os que partem,
retornem, e que todas as viagens
sejam feitas, ao acaso, por todos.
Festejemos com barulho e cartas
todas as datas que não nos pertencem
e temamos juntos o depois de amanhã.
Quem mais que o menino pobre
terá sabido fugir e, como gato, voltar
à casa em que não temos nada? Quem melhor
terá sentido o toque macio das botinas
de latinoamérica, que vendedor
terá melhor se empanturrado sem pagar
e, súbito rico, trocado milhões
por meio sanduíche? Não importa,
pois amanhã tudo retorna:
voltarão a noite, a fome, o medo e o sereno.
(haverá sereno? Não sabemos,
pois não há chuva, e nem futuro:
não é preciso olhar para o céu)
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