28.9.08

Dias difíceis

Ontem foi um dia difícil. Na verdade, ia entrar às 10 da noite e ficar no restaurante até as quatro da manhã. Acabei não fazendo nada o dia todo, um pouco por estar imprestável, um pouco porque é muito fácil passar o dia aprendendo notícias - o conhecimento com data de validade.

Mas aí às 16h45 recebi um telefonema dizendo pra ir pra lá, que a norueguesinha que ia dividir comigo tinha cancelado e que eu deveria ir às 17h. Estava indo lavar roupa, disse que não podia chegar antes das 18h mas que iria o mais rápido possível. Lavei minha roupa e fui. A noite foi longuíssima - quer dizer, deve ter havido momentos de interesse mas tudo de que me lembro é de uma imensa vontade de ir embora e da sensação de tempo, esse esperar tão evidente na etimologia comparada do garçom, preenchendo todos os poros do corpo e deixando todos os acidentes, as reclamações tão francesas, a louça e talheres cantando, o dinheiro entrando e saindo, tudo como num volume mais baixo - até a volta pra casa às 4h30, quando cruzei a Praça do Panthéon e notei que estava inconscientemente tentando desviar os sapatos dos paralelepípedos mais íngremes, que pareciam ignorar a sola de couro (ou borracha, nunca soube) e atingir direto esses calos pouco familiares não do movimento mas da estática, aguçando a sensibilidade como a penumbra ou o álcool, calos que floresciam ainda jovens e expunham, como numa fratura, a vida que continua a correr.

Acordei com dificuldade e fui para a minha importante reunião de domingo: visitar Chartres com um amigo que não sei em que cidade verei novamente. Pegamos correndo o trem das 9h30, dormi o percurso todo, rodamos o centro velho todo da cidade e voltamos num trem que eu achei que era às 15h30 e na verdade era às 15h26. Por sorte ele não sabia dessa pequena diferença, ou teria ficado desesperado e teríamos perdido minutos importantes.

Chartres em si é como outras cidades históricas européias. Me interessou mais pela vida quotidiana da gente dali, que tem de se equilibrar entre aderir às modas tão pouco inventivas saídas da cabeça de artistas publicitários, embalando corpos estéreis e sendo difundidas no ar que respiramos, e habitar um cenário de 300 a 700 anos de idade, do qual provavelmente pelo menos metade da sua família depende pra sobreviver. Pensem então uma Campos do Jordão onde o ar cheirasse menos a plástico, gesso e gelo seco, uma cidade com vida própria a qual se pode espiar, sem a certeza de que todos os momentos e surpresas foram cuidadosamente planejados numa sala de paredes brancas.

Dormi no trem da volta, corri pra casa, me troquei e cheguei ao La Contrescarpe (ele se chama assim, meu trabalho) umas 17h15. Estavam todos lá, ninguém reclamou e peguei mesas. A noite passou rápido e - concluo agora - evidentemente a tudo a gente acaba se acostumando. No fim da jornada, depois da meia noite, ganhei gorjetas incríveis, um escocês foi com a minha cara e me deu sete euros, um outro dois, três e depois mais dois.

Quando fiz a conta, a notícia: faltavam dez euros. Simples assim: entre o que eu devia ter e o que eu tinha, a sobra era de dez euros. Como eu tinha trazido vinte em moedas pequenas, tinha dez a menos do que quando cheguei. Várias contas feitas, descobrimos que eu tinha perdido uma nota de cartão de dez euros, ou seja, empatei. Evidentementente, devo ter perdido mais que um tíquete de cartão. Foi aí que tomei a decisão.

Depois das duas, sentamos pra comer todos, e foi o momento mais intimista que vivi ali, como num daqueles filmes tão movimentados como uma criança pedindo atenção mas em que o melhor momento é o mais despretensioso, onde os heróis deixam de ser heróis, as princesas deixam de ser princesas e bem, os servos nunca deixam de ser servos não é mesmo?, mas onde - eu disse onde - todas essas relações sociais parecem ter sido suspensas por um instante, todos parecem depender igualmente uns dos outros e poder se servir de porções iguais do coelho sobre a fogueira. (Pra que as relações sociais sejam suspensas com coerência, um filme precisa fazer crer que a própria sociedade está em suspenso - em stand by - naquele momento.)

Então, depois de algumas canções e quando todos haviam ido embora menos o gerente, a garçonete amiga dele e eu, ele levantou. Eu teria folga terça e quarta. E eu disse que talvez não voltasse na quinta, que não ia esperar perder duzentos euros pra parar. (E vejam que aí mostro uma habilidade para o cassino ou para a bolsa que não se apresenta quando o jogo vai além da superfície.) E ele me diz que eu é que tenho que escolher, que isso acontece com todos os novatos etc., e eu digo que vou pensar mas em princípio segunda-feira (isto é, daqui a doze horas) é meu último dia.

Voltamos os três pra casa pelo mesmo caminho. Eu tento lhes indicar bicicletas para alugar, mas nenhuma estação tem bicicletas que funcionem. Nos despedimos e volto para o meu quarto no sexto andar.

***

Sinais de velhice: depois de seis dias, mesmo fora da religião o terceiro mendamento (quarto?) parece sábio o suficiente. Não serei o primeiro a não voltar do descanso. Às vezes é necessário abdicar de muitas alternativas e guardar apenas a essencial.

Sinal de juventude: devo retornar amanhã uma ligação de alguém que recebeu meu CV e me ligou ontem à tarde. Se forem menos de 45 horas por semana, quem sabe?

1 Comments:

Anonymous Anônimo argúi...

Ah, estou sem palavras, eis que acaba aqui a aventura?
O que teria sido se a norueguesa não tivesse desaparecido, se ela tivesse dividido o turno com vc?
E se vc não tivesse, despretensiosamente, perdido seus dez euros? Será que esse lapso pode ser investigado, ou é tão comum assim em novatos universitários, de inteligência acima da média, a ponto de não poder ser considerado expressão do inconsciente?
Ou todos os novatos universitários, com inteligência maior do que a média, se valem do mesmo lapso?
Bom, só acaba quando termina!

terça-feira, setembro 30, 2008 12:06:00 AM  

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