15.12.06

MANIFESTO DA POESIA ALHEIA

Diante do sucesso de um alheio do Paulo Moura postado pela Ana Rüsche no Peixe de Aquário, deixo aqui para visitação pública, conforme publicado na FNX XIX, o inigualável


MANIFESTO DA POESIA ALHEIA



“a verdade, cuja mãe é a história”
Pierre Menard


1. a poesia já está pronta no mundo, cabe ao poeta apenas identificá-la.

2. em todas as artes visuais e auditivas já se notou que é possível encontrar poesia (poetik) pronta no mundo, bastando ao artista registrá-la. a poesia escrita, versificada (dichtung), permanece presa à concepção de que o artista precisa acrescentar algo de seu ao real para transformá-lo em arte.

3. um fotógrafo não cria a cena de sua arte. ele tem a sensibilidade de captar com suas lentes o momento, o gesto, a expressão, a luz – a poesia. a poça, o café, a paisagem, a criança, o engravatado, são todos ready-made.

4. como o fotógrafo, o poeta alheio tem ao seu redor as paisagens dos textos e, em sua leitura, a sensibilidade para captar a imagem poética. ele apenas a enquadra em versos, dá, se necessário, o foco com sua pontuação e, finalmente, sugere ou explicita a imagem com um título.

5. a idéia da poesia criada, da poesia-inovação, não é apenas um preconceito – é um preconceito moderno. a antigüidade sempre reconheceu a mimesis como poiesis. não há imitação sem criação. todos os grandes épicos foram criados sobre outros textos, recriação de tradições orais ou de outros épicos.

6. a poesia alheia traz em seu bojo a superação do conceito moderno de originalidade. os gregos atribuíam a um indivíduo – homero – a autoria de textos que hoje são considerados obra de todo um povo, e foi só a partir dos helenísticos que se enraizou a necessidade de destaque do autor concreto de uma obra. hoje indivíduo e originalidade parecem ser elementos indissociáveis do conceito de autoria, daí a denúncia feita pela poesia alheia.

7. a poesia alheia surge como um movimento literário pós-moderno, fundado na superação do indivíduo autônomo burguês, também conhecido como moderno – ficção romântica calcada no culto ao gênio, na busca de metanarrativas totalizantes, de verdades abstratas e valores universais. para isso vieram com a bravata da “originalidade” e da “novidade”.

8. a poesia alheia não se pretende um ismo, ou um ismo a mais: ela se afirma como poesia alheia, e não como alheinismo, e seus poetas, alheios e não alienistas.

9. o poeta alheio não cria as formas da poesia que faz – o poeta alheio é aquele que identifica/localiza a poesia existente. todo poeta deve ser mais fabulador do que versificador, porque ele é poeta pela imitação e porque imita.

10. como dizer que um poema é seu? se a poesia está é nos olhos de quem a descobre. se a poesia já está pronta no mundo. se nada há que seja novo debaixo do sol. como dizer que um poema não é seu?

11. o trabalho braçal não é condição essencial para a poesia alheia. a descoberta pode ocorrer num texto sem que este tenha necessidade de ser modificado. o trabalho pode se dar apenas nos sentidos e significados, sem que uma única vírgula precise ser mexida.

12. a simples atribuição de um novo sentido até então desconhecido ou a colocação de algum verso num contexto até então impensado pode constituir um poema. por acaso os versos têm lacre de segurança? uma vez usados, não podem ser reutilizados?

13. o poeta alheio não faz malabarismos com palavras. o mérito do poeta alheio não está em criar, está na descoberta. mede-se um poema alheio pela qualidade da descoberta. descoberta, redescoberta, rerredescoberta e todas as outras descobertas são poesia, tantas vezes quantas forem as inúmeras descobertas.

14. a poesia alheia é a descoberta do poético no texto alheio. é dever do poeta que a descobre revelar essa poesia. não aproveitar a poesia presente no mundo não é apenas um preconceito: é um desperdício.

15. duas entrevistas alheias:

WOB - octavio paz, gostaríamos de saber sua opinião sobre a polêmica de a poesia alheia ser um passo atrás em relação às vanguardas que pregavam a ruptura e a invenção.

OCTAVIO PAZ - al negar la tradición, la prolongamos; al imitar a nuestros predecesores, los cambiamos. la imitación es invención: la invención, restauración. (cf. convergencias. barcelona: seix barral, 1992. p. 147)

WOB - josé paulo paes, e o senhor, como entrou nessa de poesia alheia?

JOSÉ PAULO PAES - eu me lembro que quando descobri o bandeira, vi um anúncio de um batom que dizia assim: de lábio em lábio, dou a volta ao mundo. pronto, pensei, é só você colocar don juan, no título, e você tem um epigrama direitinho. de modo que, tendo os olhos e a sensibilidade em estado de alerta, você pode captar o poético a todo momento. (cf. revista cult n. 22, maio de 1999)

então, seguindo o conselho do mestre, como seria o tal poema:

DON JUAN

de lábio em lábio
dou a volta ao mundo


16. nenhum texto está a salvo de conter poesia. pode-se fazer poesia alheia roubando uma frase dentro do ônibus, um aviso em bula de remédio, um texto de pound. exemplo:

TESOURO DOS CZARES

o depósito antigo
de coisas preciosas
de cujo dono não haja
memória será
dividido por igual
*


17. não existe estelionato poético. direito autoral? plágio? acima deles a carta magna: “a propriedade atenderá sua função social”. há verdadeiros latifúndios poéticos prontos para terem seus tesouros revelados pelos poetas alheios e há poetas alheios latentes em todos, non sibi sed bono publico – não para si, mas para o bem público.

18. a verdadeira atividade criativa (e a proteção autoral pressupõe isso, uma “criação do espírito”) estaria em quem encontrou o poético no texto, e não no texto em sua versão original.

19. ata do copom, bula de medicamentos de tarja preta, manual de instruções do vídeo cassete, editorial de jornal sobre os rebeldes maoístas no nepal, descrição do ciclo migratório das enguias do atlântico norte, gramática normativa da língua portuguesa, sala de bate-papo da internet, fórmula matemática para descobrir números primos, errata de livros mal revistos, resenha de crítico de arte, constituição federal, laudo do iml, e-mails de spam, uma entrevista do lula: em tudo há poesia.

20. garimpai!

wallace o’brian
piratininga, 22 ou 23 de janeiro de 2005



* Cf. Código Civil de 2002, art. 1.264.1.




6 Comments:

Blogger ana rüsche argúi...

ahá! vc achou! excelente, vou linkar agora mesmo. beijos

sexta-feira, dezembro 15, 2006 3:35:00 PM  
Blogger Fábio Aristimunho argúi...

Esse manifesto é muito bom, toda vez que releio saio com idéias novas.

Lembro aqui um alheio meu (que depois foi mexido, mas na essência é alheio):

http://medianeiro.blogspot.com/2006/08/o-evangelho-segundo-praa-roosevelt.html#links

Abraço

sábado, dezembro 16, 2006 7:42:00 PM  
Blogger Geraldo argúi...

Esse pra mim é o melhor alheio. Ou pelo menos o que deu mais trabalho, hahaha! Porém gosto mais da versão original. Aproveita o gancho e posta lá!

sábado, dezembro 16, 2006 8:54:00 PM  
Anonymous Anônimo argúi...

e, FAV, esse 22 ou 23 de janeiro de 2005 me fez lembrar das muitas cervejas no opção.
bons tempos aqueles.

terça-feira, dezembro 19, 2006 3:45:00 PM  
Blogger Fábio Aristimunho argúi...

Na época eu falei pra você, Paulão, que a data assim nos traria boas risadas!

quinta-feira, dezembro 21, 2006 2:51:00 PM  
Blogger Philosopho argúi...

Minha erudição não é das maiores, mas vamos lá. Uma poetik, como a considerada mais acima, parece-se muito com aquela interpretada a partir de Aristóteles: em tudo há poiésis, porque em tudo há produção. Na antiguidade se comparava a poesia com as artes "plásticas", como escultura e pintura, vocês a compararam com a fotografia. Magnífico. Eu compararia ainda com a fotografia do cinema. Também foi o usado o termo Dichtung, derivado o verbo dichten, condensar, fazer ficar consistente (e olha que este verbo tem a ver com calefação e demais elementos de construção). Os românticos usavam Dichtkunst para poética, e Dichtung para poesia, o que amplia horizontes e constrói esferas interdependentes, porque eu crio obras no e do interior de uma arte e me exercito nessa arte produzindo o que é lhe é pertinente. Logosofias à parte, quero dizer que, como leitor dos românticos, admirei o manifesto, porque ele me pareceu a atualização de uma série de programas. Pena não tê-lo visto antes, mas acredito que ainda podemos conversar.

um abraço
Leonardo, Pirituba

quinta-feira, agosto 07, 2008 5:58:00 PM  

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