13.1.07

Um pouco de cinema

De início pensava usar este blogue (sim, blogue, como dizia o grande Gandhi ou o grande Buda ou o grande sei-lá-quem, seja a diferença que você quer ver no mundo) pra falar unicamente de poesia, ou seja, tudo o mais ser pretexto pra botar algum poema meu ou alheio. Mas é que às vezes realmente não dá, até porque ao contrário do que querem nos fazer crer não existem disciplinas estanques e autônomas nesse mundo - hoje em dia, como se sabe, até poesia e prosa são alvo de uma divisão espetacular, um pouco como duas tribos africanas em guerra com o objetivo de capturar escravos da outra tribo e trocá-los por armas com o colonizador, para capturar mais escravos.

Então preciso falar um pouco de cinema, mais especificamente da Dama na Água, um filme que tem tudo pra passar batido como filminho da Disney, com criaturas mágicas e narrador da Globo falando, "E esse cara vai passar por altas confusões pra conseguir levar essa gata de volta ao mundo da água". Pois esse é exatamente o problema. Primeiro OK, fui assistir num cinema da classe média alta paulistana no qual as pessoas nem têm a pretensão de parecerem espertas, e tive de ouvir de um transeunte na saída, "Puta filminho de Sessão da Tarde, hein?".

Mas eu não sei o que acontece com pessoas realmente inteligentes que mal elas vêem uma criatura mágica, um macaco ou crianças na tela e já colocam o filme no compartimento Filmes de Entretenimento, e ignoram completamente qualquer possibilidade de significado. Chegam inclusive a dizer, como se nada estivesse acontecendo, "Ah, eu não gosto desses filmes em que o autor tenta passar uma mensagem" - tratar-se ia dos filmes sérios, que ficam problematizando, em oposição aos filmes leves; a vida já tem problemas demais. Um filme como Bambi, por exemplo, não está te influenciando de nenhuma forma, não tem relação com esse palavrão quase sussurrado que é a 'contaminação ideológica'. Como disse o Ademir Assunção outro dia, Oh, sim, claro, Mister Jones.

Se não, vejamos. Vou listar alguns poucos elementos que tornam tão gritante a existência de uma 'mensagem oculta' nesse filme que não consigo conceber que uma pessoa saia pra tomar sorvete e falar da balada depois assim, dizendo que gostou ou não gostou e gosto não se discute, que não é filme pra pensar e é sobre um hotel e uma ninfa de um reino da água nada a ver.
  1. A ninfa se chama Story (História).
  2. A História aparece para um americano resignado, que quer esquecer o passado e por assim dizer desistiu da vida, de construir a própria história (pegou, hã-hã?) sendo ele médico, e agora é zelador de um condomínio onde moram pessoas de várias nacionalidades.
  3. O americano só poderá compreender a História e resgatá-la recorrendo à tradição milenar (na forma de uma canção de ninar) de uma chinesa. Anoto que a chinesa-filha, americanizada, não pode ajudá-lo, é necessário recorrer à chinesa-mãe, tradicional e que não fala inglês.
  4. A História tem como missão influenciar um jovem indiano (não americano), a produzir um livro que trará idéias novas e mudará o mundo.
  5. O americano, mesmo depois que aceita a tarefa de curar a História, só consegue fazê-lo com a ajuda das imigrantes chicanas, e da indiana. Porém elas o apóiam, apenas, quem tem o poder de curar a História lembrando-se do seu passado é o nosso herói americano.
  6. Adicionalmente, o indiano morrerá tendo apenas produzido idéias; a História nega a ele a possibilidade de agir. Quem realmente irá alterar o mundo, o homem de ação da História, será um garoto que se tornará Presidente dos Estados Unidos da América.
  7. O americano é arrogante e tenta, antes de mais nada, resolver tudo sozinho, antes de tentar compreender a História e que precisa de outras pessoas pra que ela complete seu desígnio. Depois dizem que foi o crítico de cinema chato, o cara que entende de histórias e já viu tantas que consegue identificar com precisão os papéis a serem desempenhados pelos atores, dizem que esse cara é arrogante. Mas o crítico dá informações precisas. Quem interpreta apressadamente é o nosso amigo gringo - até que dá errado.
  8. A História é levada por uma águia - uma águia, sacam?, é símbolo de um país aí da América do Norte.
  9. E como se não bastasse, ficam passando na tevê o tempo todo imagens da Guerra do Iraque. Quase sacudindo o público, "Me entenda, me entenda!", e nada.

Enfim, note-se que o filme não é nem revolucionário ou algo assim, ele só defende uma postura de multilateralismo liderado pelos EUA, mas contando com os estrangeiros e apoiado no conhecimento tradicional e na compreensão antes da ação. Uma coisa assim bem ONU, quase tree-hugger, um pouco como devem pensar os extremistas do Partido Democrata.

Mas espanta a incapacidade geral de compreensão, o despreparo pra entender qualquer mensagem que não seja formatada feito Jornal Nacional ou campanha do Zé Gotinha, Matricule-se Já. O que não espanta, depois disso, é as pessoas reproduzirem como verdade o que lêem na revista semanal ou vêem na novela.

Por sinal, acho que qualquer ficção científica pré-TV que incluísse aparelhos de comunicação, presentes em todos os lares, de mão única e transmitindo opiniões, palavras de ordem, ensinamentos morais e ditando a vestimenta do próximo verão aos receptáculos, no século XIX por exemplo, só conceberia esses aparelhos dentro de uma sociedade totalitária. Mal sabiam eles até onde a Liberdade seria capaz de guiar o povo.

3 Comments:

Blogger Fábio Aristimunho argúi...

Pra ficar no âmbito da simbologia, na tua crítica cinematográfica eu me identifiquei com o cara que diz "Que filminho Sessão da Tarde, hein". Realmente não captei a Mensagem, maiúscula, do filme. Agora acredito que realmente tivesse alguma pretensão, como você bem expôs e concordo, mas mesmo assim acho que a realização ficou longe da concepção. Só tem pessoas taciturnas nos filmes do Shiamalan, uma hora cansa.

Sugiro que faça uma crítica de Filhos da Esperança - não se engane pelo título que o filme é bem bom.

Abraço

terça-feira, janeiro 16, 2007 11:26:00 AM  
Blogger Emanuelle Santos argúi...

Gegeco,amigão!

Inspirado pelo seu post, e sem qquer outra opção, comprei o DVD pirata de Dama na Água na banquinha de DVDs piratas lá perto do meu cafofo em Ós.

É realmente gritante como os elementos que vc colocou nesse post estão no filme, literalmente gritando "estoy aqui" e ningém percebe. Toda essa simbologia -- tema do filme inclusive -- aparece mesmo só pra quem já tem o olharzinho treinado pra isso.

O problema do filme é que o diretor, embora seja suficientemente sensível pra captar tudo isso, uma vez que, pelo que entedi nos extras do DVDeco, a história de ninar é do Shiamalan, não consegue custurar isso tudo muito bem e embora vc tenha no filme toda a questão cultural que vivemos contemporaneamente é meio que a falta de expertise do cara que nem deixa o filme 100% sessão da tarde e nem eleva o filme a lago que nos faz pensar, ficando a coisa numa espécie de limbo, que não é limbo...

Eu diria que o que vc viu em a Dama na água é um fenonemo muito comum no cinema de hj em dia. Os diretores colocam os elementos, que hj depois de tão expostos atraves de varias formas de arte engajada, estão aí para que qquer um com uma educação decente consiga ver. O problema é exatamente a falha na costura desses temas que delata exatamente a incapacidade contemporanea ainda de entender como tudo isso funciona junto, reflexos, à meu ver, da famigerada fragmentação que por mais que nos permita ver a parte nos educa a nem imaginar que pode haver um todo.

Falemos mais a respeito!

beijos
Manu

sábado, fevereiro 03, 2007 3:24:00 PM  
Blogger Geraldo argúi...

Valeu, Manu! Apenas gostaria de avisar os incautos de que não se trata de um bom filme! Apenas é o caso que despertou minha vontade de fazer esse comentário, pelo contraste. Mas sigam a dica da Manu - vale apenas na falta de opção!

quinta-feira, fevereiro 08, 2007 10:06:00 AM  

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