Acabo de ver um filme chamado Memórias de Casanova, ou só Casanova, vocês sabem como são essas coisas. E preciso dizer - só escrevo aqui coisas que preciso dizer - que terminei o filme revoltado, esbravejando pra pessoas intrigadas com atitude tão bizarra diante de um filme bobo.
Meu problema com o filme era apenas o enredo. Achei o figurino adequado, as intepretações críveis e o cenário bem-construído (afora uma ou outra marcas de avião no céu veneziano do século XVIII, quando não se arava ainda o céu). Apenas o enredo, qual seja, segundo a wikipedia:
"Casanova, pela primeira vez na vida, encontra uma mulher que o rejeita. Ela é a bela veneziana Francesca Bruni e, para conquistá-la, Casanova usa os mais variados disfarces e estratégias, colocando em jogo sua reputação e até mesmo a sua vida." (devo dizer que existe um filme do Fellini e que obviamente não é o que interessa)
Vocês entenderam então? Casanova, o libertino, Casanova, o maior dos sedutores, Casanova, o destruidor de corações (não de famílias, nessa época não tinha dessas em Veneza), se apaixona, que é a forma polida de dizer: encontra uma mulher que o rejeita (não estou igualando as duas coisas, por favor - mirem mais embaixo). E então faz o possível e o impossível para tê-la, abdica dos seus amores e até de deflorar a virgem que lha daria uma aparência digna e lhe salvaria o pescoço da inquisição.
Me corrijam aqui todos os semioticistas, todos os psicanalistas, todos os filósofos e todos os lógicos se eu estiver errado: o Casanova hollywoodiano deixa de fruir o presente e é dominado pelo amor Shakespeariano, aquela abdicação do presente pela fruição do futuro (que, como o inglesinho apontou, identifica-se com a vida eterna e portanto com a morte). Permanece perseguido, vejam bem, como se houvesse uma continuidade entre uma coisa e outra.
Mas não há. Há é a grande inversão do mito, que passa a propagar assim : o maior dos conquistadores não era um conquistador, mas no fundo um infeliz frustrado ; a fruição dos seus desejos ainda não é a felicidade ; a verdadeira felicidade está em outro lugar, no inatingível, ali, e não no que você está fazendo agora ; é preciso estar frustrado, há algo além pelo que vale a pena lutar, usar todos os disfarces e estratégias ; cuidado, pois pode não ser pra sempre e, se não for pra sempre, retroativamente isso significa que não deu certo.
Não é ainda que o libertador se converteu na prisão. É mais primitivo: a prisão se apresentando com um cartão onde se lê, "Libertador".
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Uma vez o Blattner me disse sobre a Montanha Mágica que o sujeito estava deitado no quarto da amada vendo entrar a luz da manhã, e que ele então pensava que aquilo era apenas a ponta do enorme iceberg da felicidade, quando na verdade aquele momento era a própria felicidade. É isso. O filme nos treina para procurar o iceberg, e nos deixa muito inquietos quando não conseguimos nem mesmo vê-lo, pois estamos ocupados demais admirando a ponta. Que ao menos tirássemos fotos da ponta, para poder fruí-la pra sempre.
Vi também admirável mundo novo outro dia em filme, a mesma mensagem : na verdade o Amor existe e os seres do futuro é que foram privados dele, até de Shakespeare, ah Shakespeare que nos diz tanto. Nosso mundo, e não o deles, é que é o único possível, diz o filme. Espero que o livro não seja assim - 1984 certamente não é, embora tentem fazer dele um apaixonado tratado de anti-stalinismo.
O saldo, que apresento como a novidade da temporada : Hollywood é uma máquina de pegar histórias e transformá-las em comerciais da tesoura do Mickey e da Minnie, lembram dela? De te garantir que existe um mundo do depois-de-conseguir, um mundo muito melhor, onde finalmente você estará a salvo, sem dor e sem remorso e ao lado dos que te amam, onde tem prostitutas bonitas para a gente namorar.
Sinto dizer, mas esse mundo tem nome, e é o Além. Chegar a ele demanda a morte.