30.9.08

La creazione dell'uomo

Ontem, segunda-feira, devia ter sido meu último dia de trabalho no La Contrescarpe. Não foi.

Às vezes precisamos dos liberais, que nos lembram como é que as coisas são. O objetivo do meu comparecimento na segunda era digamos para ajudar, porque terça e quarta eram minhas folgas previstas e minha partida eu só a havia anunciado no domingo quando todas as cadeiras já haviam sido colocadas sobre as mesas. E evidentemente eles teriam tempo de arrumar um substituto até a quinta-feira mas não diretamente na segunda. Aí surgiu um evento muito mais interessante e importante e eu estava triste, melhor dizendo indecidido, porque tinha verdadeiramente me comprometido a dar essa ajudinha final.

Pois fui lembrado que nossas relações não se passam num meio de ajuda mútua, de confiança e respeito. Estamos, nós ao sul das Guianas, muito mais acostumados, mais confortáveis até, com a relação de autoridade, de complementaridade, e alguns usariam até palavras mais fortes. Porém aqui impera exatamente o contrário: o encontro entre induvíduos na igualdade absoluta, isto é, a ausência total de autoridade, e é claro que por causa disso o poder se apresenta na sua forma mais nua, e se exerce sem motivação nem consideranda. Autrement dit, estamos no mercado. Eu havia vendido minha força de trabalho, eles a tinham comprado - não havia nada mais que nos ligasse. Como cães que acabam de copular e, diante de um único bife, estão apenas seguindo seus instintos ao se estraçalhar pelo alimento. O mais forte vencerá, e será doloroso e comovente, mas a espécie sairá ganhando. Mas eu não, eu estava ali, preso como mesmo com os cães às vezes acontece, e como que fisicamente impedido de avançar contra o meu parceiro de há tão pouco, tão pouco. E, evidentemente, essa fraqueza é tão indesejável, do ponto de vista da coletividade, quanto ter as patinhas dianteiras atrofiadas.

A diferença é que, ao contrário da atrofia física, a atrofia moral - e me desculpem se sôo oitocentista - é remediável. Pois foi aí que meu liberal particular me abriu os olhos: finda a relação de colaboração, eu é que tinha o poder (vous avez le droit, eles dizem) de simplesmente não aparecer. E foi o que fiz. Não sem alguns deslizes: telefonar avisando, ainda uma medida de cortesia, mas principalmente inventar ao telefone uma desculpa de saúde, um braço distendido e a impossibilidade de ajudar. Traindo o quanto de cana-de-açúcar nosotros levamos en la sangre.

Hoje, passei ao lado e cobri a cabeça para não ser reconhecido.

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28.9.08

Dias difíceis

Ontem foi um dia difícil. Na verdade, ia entrar às 10 da noite e ficar no restaurante até as quatro da manhã. Acabei não fazendo nada o dia todo, um pouco por estar imprestável, um pouco porque é muito fácil passar o dia aprendendo notícias - o conhecimento com data de validade.

Mas aí às 16h45 recebi um telefonema dizendo pra ir pra lá, que a norueguesinha que ia dividir comigo tinha cancelado e que eu deveria ir às 17h. Estava indo lavar roupa, disse que não podia chegar antes das 18h mas que iria o mais rápido possível. Lavei minha roupa e fui. A noite foi longuíssima - quer dizer, deve ter havido momentos de interesse mas tudo de que me lembro é de uma imensa vontade de ir embora e da sensação de tempo, esse esperar tão evidente na etimologia comparada do garçom, preenchendo todos os poros do corpo e deixando todos os acidentes, as reclamações tão francesas, a louça e talheres cantando, o dinheiro entrando e saindo, tudo como num volume mais baixo - até a volta pra casa às 4h30, quando cruzei a Praça do Panthéon e notei que estava inconscientemente tentando desviar os sapatos dos paralelepípedos mais íngremes, que pareciam ignorar a sola de couro (ou borracha, nunca soube) e atingir direto esses calos pouco familiares não do movimento mas da estática, aguçando a sensibilidade como a penumbra ou o álcool, calos que floresciam ainda jovens e expunham, como numa fratura, a vida que continua a correr.

Acordei com dificuldade e fui para a minha importante reunião de domingo: visitar Chartres com um amigo que não sei em que cidade verei novamente. Pegamos correndo o trem das 9h30, dormi o percurso todo, rodamos o centro velho todo da cidade e voltamos num trem que eu achei que era às 15h30 e na verdade era às 15h26. Por sorte ele não sabia dessa pequena diferença, ou teria ficado desesperado e teríamos perdido minutos importantes.

Chartres em si é como outras cidades históricas européias. Me interessou mais pela vida quotidiana da gente dali, que tem de se equilibrar entre aderir às modas tão pouco inventivas saídas da cabeça de artistas publicitários, embalando corpos estéreis e sendo difundidas no ar que respiramos, e habitar um cenário de 300 a 700 anos de idade, do qual provavelmente pelo menos metade da sua família depende pra sobreviver. Pensem então uma Campos do Jordão onde o ar cheirasse menos a plástico, gesso e gelo seco, uma cidade com vida própria a qual se pode espiar, sem a certeza de que todos os momentos e surpresas foram cuidadosamente planejados numa sala de paredes brancas.

Dormi no trem da volta, corri pra casa, me troquei e cheguei ao La Contrescarpe (ele se chama assim, meu trabalho) umas 17h15. Estavam todos lá, ninguém reclamou e peguei mesas. A noite passou rápido e - concluo agora - evidentemente a tudo a gente acaba se acostumando. No fim da jornada, depois da meia noite, ganhei gorjetas incríveis, um escocês foi com a minha cara e me deu sete euros, um outro dois, três e depois mais dois.

Quando fiz a conta, a notícia: faltavam dez euros. Simples assim: entre o que eu devia ter e o que eu tinha, a sobra era de dez euros. Como eu tinha trazido vinte em moedas pequenas, tinha dez a menos do que quando cheguei. Várias contas feitas, descobrimos que eu tinha perdido uma nota de cartão de dez euros, ou seja, empatei. Evidentementente, devo ter perdido mais que um tíquete de cartão. Foi aí que tomei a decisão.

Depois das duas, sentamos pra comer todos, e foi o momento mais intimista que vivi ali, como num daqueles filmes tão movimentados como uma criança pedindo atenção mas em que o melhor momento é o mais despretensioso, onde os heróis deixam de ser heróis, as princesas deixam de ser princesas e bem, os servos nunca deixam de ser servos não é mesmo?, mas onde - eu disse onde - todas essas relações sociais parecem ter sido suspensas por um instante, todos parecem depender igualmente uns dos outros e poder se servir de porções iguais do coelho sobre a fogueira. (Pra que as relações sociais sejam suspensas com coerência, um filme precisa fazer crer que a própria sociedade está em suspenso - em stand by - naquele momento.)

Então, depois de algumas canções e quando todos haviam ido embora menos o gerente, a garçonete amiga dele e eu, ele levantou. Eu teria folga terça e quarta. E eu disse que talvez não voltasse na quinta, que não ia esperar perder duzentos euros pra parar. (E vejam que aí mostro uma habilidade para o cassino ou para a bolsa que não se apresenta quando o jogo vai além da superfície.) E ele me diz que eu é que tenho que escolher, que isso acontece com todos os novatos etc., e eu digo que vou pensar mas em princípio segunda-feira (isto é, daqui a doze horas) é meu último dia.

Voltamos os três pra casa pelo mesmo caminho. Eu tento lhes indicar bicicletas para alugar, mas nenhuma estação tem bicicletas que funcionem. Nos despedimos e volto para o meu quarto no sexto andar.

***

Sinais de velhice: depois de seis dias, mesmo fora da religião o terceiro mendamento (quarto?) parece sábio o suficiente. Não serei o primeiro a não voltar do descanso. Às vezes é necessário abdicar de muitas alternativas e guardar apenas a essencial.

Sinal de juventude: devo retornar amanhã uma ligação de alguém que recebeu meu CV e me ligou ontem à tarde. Se forem menos de 45 horas por semana, quem sabe?

26.9.08

Mais

Entrada: 22h.
Saída:4h30.
Total de caixa: 285,40 euros.
Total de gorjeta: 21,96 euros.

***

Meu dia começou assim: acordei às 9h30 da manhã depois de ter dormido umas 5 ou 6 horas, comi meia baguete tradição (1,05 euros cada) com manteiga. Fui pegar o vinho e o espumante que tínhamos comprado pra hoje, quando iam ser entregues as notas do Master. Fomos pra sala com isso, a Daphnée já estava com salgadinhos e toalhinhas vendo a sala. Empurramos cadeiras e mesas pra fora. Eram 10h3à e ia começar a reunião de recepção da nova turma, então saímos correndo pra nos apresentarmos, que éramos da associação de estudantes e tal. A coordenadora não se lembrava do meu nome. Dissemos um oi e voltamos pra espalhar salgadinhos pelas salas e abrir os vinhos (ficamos discutindo se se devia ou não abrir os espumantes antes de as pessoas chegarem, até que alguém cansou e resolveu abrir). Esperamos um pouco e as pessoas da nossa turma foram chegando, todos vestidos como estudantes que não estão acostumados a terem que parecer chiques se vestem quando têm que parecer chiques.

Então finalmente acabou a reunião e vieram os novos estudantes, querendo parecer folhas em branco como alguém disse uma vez e nos pedindo para formatá-los para se darem bem no novo ano. Então a professora leu as notas, a que não lembrava meu nome, e a russa e a americana tinham sido reprovadas e eu tinha tido a melhor nota - não tem duas formas de dizer isso - fora o luxemburguês que já tinha tido sua nota há muito tempo e estava em Nova Iorque. Era uma nota que eles arredondaram pra cima, 15/20, e assim eu ganhava uma menção especial, "bien". A russa e a americana tinham pedido pra eu me certificar de que realmente elas tinham sido reprovadas e enviar e-mails pra elas, pois elas tinham ido embora antes da reunião.

Então bebemos champanhe e vinho mas sobraram muitas garrafas, tentamos vender pro pessoal da outra turma mas eles já tinham as próprias, então decidimos ir almoçar num restaurante japonês. Deixei 15 euros, ou seja, um pouco menos do que minhas gorjetas de ontem (a cerveja chinesa custou 5 euros). Voltamos pegar as garrafas e trazê-las para o meu apartamento, e eu fiquei de dar uma festa pros novos alunos ainda em outubro com elas. Eu, o Noël, o Manuel e a Sonia, eles todos franceses, tomamos café aqui, depois a Sonia saiu pra uma reunião e o Manuel mostrou pra mim e pro Noël clipes de rap com letras sexuais e degradantes para as mulheres. O Noël é gay. Os dois foram embora e eu enviei os e-mails pra russa e pra americana, e tentei dormir mas consegui pouco só, talvez por causa do café. Li algumas coisas, escrevi pra amigos e saí pra uma comemoração onde eu não ficaria muito tempo, pois eram nove e às dez eu tinha que estar no restaurante - onde parece que o gerente iraniano estaria esta vez, me diziam que ele que não bebe e não fuma e fica brigando com as pessoas. Tomei apenas uma cerveja pequena na comemoração (3 euros).

Fui até o restaurante e o iraniano ficou tentando me ensinar as coisas, eu já sabia muitas pois estava no meu terceiro dia mas prestava muita atenção pois era disso que ele precisava. Era sexta-feira e as pessoas estavam generosas, eu não tinha muitas moedas então descobri que quando você pergunta se a pessoa tem vinte centavos normalmente ela te deixa ficar com o troco. O tempo passou rápido pra caramba, fechamos o terraço às duas e então eu fui pra cozinha lavar louça, copos e talheres, e a Ewelina me sacaneou de novo e perguntou se eu não tinha máquina de lavar louça em casa, mas eu respondi que eu lavo a louça na mão.

Limpamos vários utensílios de cozinha, tenho certeza que se eles soubessem o quanto eu ignoro a utilidade daqueles utensílios me mandariam embora na hora. Então me disseram que me pagariam os dois últimos dias e mais a meia jornada de hoje, e esse então fica sendo o meu primeiro salário nesse ramo - fora quando eu tinha doze anos e fui pra búzios na casa de um amigo dos meus pais, e o pai desse amigo era quem morava em Búzios e ele tinha uma fábrica de gelo. Eu e os netos dele passamos duas horas carregando gelo e ganhamos cinco reais cada um. Eu devia ter doze anos, mesmo, ou até um pouco mais.

Então o iraniano (ele se chama Hussein, talvez seja iraquiano) me disse que eu não ia poder folgar domingo, pois já haviam pegado esse dia e eu expliquei que quando combinamos ele disse que seriam domingo e segunda minhas folgas, e que eu havia marcado uma coisa importante pra domingo (é verdade). Ele me disse que não ia ter jeito mas que eu podia falar com o argentino pra trocarmos. Não consegui falar com o argentino.

Limpamos tudo, recolhemos o terraço e voltei pra casa. Tenho a minha condição (o primeiro salário) e um bom motivo (a troca arbitrária do meu dia de folga, do qual eu precisarei) pra não aparecer mais, ou então reclamar, talvez até criar uma briga como se faz na França e sair por causa disso. Porém a verdade é que a experiência está me agradando, o dinheiro não é mau (pode-se viver a vida toda assim, o Dmitriy me explicou logo de cara) e acho que três dias é tão tão pouco.

Preciso ver se meu programa de domingo é maleável. Se não for, podemos ter problemas.

Uma noite interessante

Vai, vocês acharam que eu não ia voltar, não é mesmo? Pois pus pra mim mesmo este point d'honneur. Fico pelo menos até sair o primeiro salário. Depois fiz minhas contas, e se eu sair deste apartamento no fim de outubro, economizo o suficiente pra viajar em novembro e até um pouco em dezembro (coisas estranhas estão acontecendo).

Então ontem voltei lá às 5 da tarde. Meu companheiro do dia se chamava Mauro e era argentino (o Dmitriy de folga nas quintas). O Jean, garçom francês, e até o chefe estavam menos intratáveis, e gosto cada vez mais dos marroquinos, banglas e mauritanianos da cozinha. O problema é mesmo a natureza do trabalho, o eterno permanecer de pé, as meias horas que se arrastam nos ponteiros do relógio da praça, a bandeja que vai se tornando mais e mais pesada, e finalmente o chegar em casa com a sensação de ter simultaneamente feito uma prova de 5 horas e jogado uma partida de rugby.

Mas ontem não foi tão mau. Já consigo fazer as coisas sozinho. Não foi tão penoso como o primeiro dia. E principalmente, apareceu lá pelas nove de uma noite meio vazia uma mesa de brasileiros bahianos, que foram praticamente meu único trabalho até a uma da manhã. Consumindo, como convêm aos BRICs, como uma dúzia de franceses cada um. E eu tendo que agradar os bons clientes sem que os chefes percebessem, com uma manteiga extra, trocando acompanhamentos, levando palitos no fim da refeição e emprestando o celular pra pegarem táxi.

Obviamente, já fui descoberto, tanto pelos brasileiros ("o que você está fazendo aqui?") quanto pela polonesa Ewelina, aquela que não fala muito ("pergunta quantas vezes ele varreu o chão na vida"). Apareceu também uma norueguesa gracinha, dessas meninas que pegam a primeira oportunidade sem nexo pra falar que têm namorado. Gosto do tipo. E ela pegou metade do "meu" horário hoje, que ia ser de onze horas. Entro às dez e saio às quatro da manhã. 

No fim da noite, ainda consegui ver uns clientes que não queriam pagar discutindo no caixa, a polícia que chegou em exatamente três minutos depois de o patrão telefonar, uns sete à paisana. O líder deles deu pros caras (um casal e um amigo) a alternativa entre pagar e ir se explicar na delegacia, e, depois de eles pagarem, anunciou que iam pra delegacia assim mesmo (por ivresse publique, uma infração que aparentemente fica na manga da polícia pra quando alguém incomoda os outros). Isso uma e meia da manhã, logo antes de fechar.

Cheguei em casa cansado o suficiente pra tomar uma sopa e dormir. E talvez o mais importante: com gorjetas. E é preciso ser específico, pois, como alguém lembrou outro dia (comentando Balzac?), falar em dinheiro sem falar em valores não é falar em dinheiro. No primeiro dia, minha conta deu 601 euros, e eu tinha aproximadamente 602 no bolso. Ou seja, voltei pra casa tão pobre quanto saí. Ontem, foram 594 de giro, e contando depois as moedas que me sobraram, voltei pra casa com 20 euros a mais. Pagará a comemoração de hoje (até às 22h), pois tivemos as notas do meu Master, que já parecia tão longe. Verdade: os bahianos devem ter sido responáveis, sozinhos, por uns 15 desses 20 euros (consumiram no total 286 euros, pagaram 300). Mas sei que dá pra pegar pelo menos uma mesa dessas por semana, e virar o brasileiro de referência. Apesar de que dificilmente ficarei tantas semanas assim, lembro bem desse trecho da Fogueira das Vaidades: 
"You see, Daddy didn't bake the cake, and Daddy isn't the one who gets to eat it. But he gets to slice the cake and hand it out. And when he does, little golden crumbs fall off the cake. And Daddy gets to eat those."
Ou, traduzindo, em auto-ajuda: nada como carregar bandejas de verdade um pouco na vida.

24.9.08

O primeiro dia

Estou destruído, mas preciso deixar satisfações. Porque daqui a alguns anos será fácil: terei sido garçom em Paris, que é tão romântico, e terei fotos (ah, tirarei fotos!) e até talvez boas histórias pra contar. Mas neste momento a vontade é não voltar mais naquele lugar.

Em termos financeiros, sejamos objetivos: sou explorado. Trabalhei 9 horas e meia, isto é, mais do que o permitido no mundo ocidental. Na sexta e no sábado, serão 11 horas e meia. Domingo e segunda não trabalho, mas isso não significa que o resto não vá somar 61 horas semanais. Pondo contudo em perspectiva: o ganho, 60 euros diários, é acompanhado de um prato do lugar (digamos, dez euros), o que dá aí uns 150 reais por dia, ou seja: em três noites de trabalho ganho um salário mínimo do Brasil. E há as gorjetas - mas hoje, por exemplo, fazendo as contas me sobrou um euro e meio. Ou seja, você é o empregado mas também é um pouco o comerciante: se enganou, é no seu bolso que pesa.

Bem, fiz um amigo que se chama Dmitri e é ucraniano: fala inglês e alemão, um pouco de espanhol, morou na Suíça e Alemanha e está cursando estudos europeus em Paris. Quer fazer um estágio ano que vem na Comissão Européia. Somos colegas de falta de sentido, embora estejamos circunstancialmente precisando da grana.

As outras pessoas são o Jean, um francês que dá raiva porque é garçom igual a gente mas se acha muito importante. Uma menina do leste europeu cujos nome e nacionalidade ainda são incógnita. E o gerente, o Christian, que se esmera em ser intratável. Na cozinha, o chef (chamamos ele de "chef") e as baixas nacionalidades: marroquino e mauritaniano. Lavando pratos, copos etc. Parece que amanhã voltará um argentino (garçom também) que será o Dmitri quando o Dmitri não estiver lá (amanhã, por exemplo).

Coisas estranhas acontecem, como o seu olhar pra meio sanduíche e muitas batatas deixadas num prato quando já é mais de meia noite e você não como desde à tarde. A raiva compartilhada com os cliente gringos pelos hábitos franceses (por exemplo, não há cinzeiros no restaurante: não é permitido ser civilizado). A previsível raiva de um grupo de brasileiros que fica batendo papo, chama conversa, pergunta de você e no fim vai embora com um abraço, protestos de estima e admiração e promessas de amor eterno, e nem um centavo de gorjeta. A vontade de se sentar depois de 8 horas de pé segurando uma bandeja. A reprimenda quando você senta (là on s'assoit pas, monsieur). O fechar o lugar depois de tudo, uma noite importante pra alguns casais, monótona pra outros, qualquer pra um grupo de amigos, fantástica pra uns turistas com câmeras profissionais. O carregar as mesas do terraço pra dentro, e então sacar por que há só uma mulher na equipe (são tão pesadas!). E o voltar pra casa acabado, e desejando apenas dar uma idéia cansada do que se passa e ir dormir.

Tenho reunião da associação de estudantes em exatamente 8 horas. Às 5, estarei lá de novo, ou seja: ao que parece, fui aceito.

23.9.08

Dia 6

Bem, eu sabia que devia ter escrito pra vocês no dia 3. O que aconteceu foi que nesse dia, quando cheguei em casa, havia questões mais importantes esperando pra serem resolvidas. E, como vocês claro sabem e compreendem, na vida é preciso ter prioridades.

Tento reconstituir (reencarnar, como alguém disse numa prova e foi considerado um insulto à língua): no dia 3 estava meio mal. Ninguém havia me telefonado apesar dos onze currículos distribuídos com efusivos apertos de mão. Então, e apesar de a teoria da equivalência das janelas ter se mostrado mais forte do que nunca, eu estava meio mal. Porque havia percorrido muitos outros bares e restaurantes e só parecia haver negativas, como se as portas da lei estivessem fechadas para mim exceto se eu mostrasse toda a minha ficha corrida nobre e enobrecedora. E havia inclusive sido sacaneado por um gerente, não pelo meu francês ruim mas vejam vocês pelo meu francês coloquial demais, street demais - isso deveria ser de alguma forma motivo de orgulho, não? Pois não foi. Entrei no personagem por assim dizer, eu pensava, eu podia precisar disso, e depois pensava na minha conta e dizia, quem estou querendo enganar?, eu preciso disso, e depois pensava nas minhas mil outras opções etc etc.

Ainda por cima uma amiga francesa tinha sugerido que eu fizesse uma carta de motivação, quer dizer, uma folha A4 em que você explica em uns poucos parágrafos por que sempre quis ser garçom, é a pessoa perfeita para o trabalho e trabalhar na [_instert company name_] realizará todos os seus sonhos e contribuirá decisivamente para o sucesso do bar ou restaurante-alvo. Acrescentou que eles acham legal quando a carta é manuscrita.

Evidentemente, isso havia tocado num ponto sensível. Quer dizer, uma coisa é defender empresas de tabaco contra pessoas que estão no leito de morte, outra coisa é sentar durante duas horas e redigir manualmente cartinhas individualizadas para bares turísticos explicando que nada te faria mais feliz do que segurar uma bandeja 35 horas por semana e ser compreensivo com pessoas que não falam nenhuma língua conhecida. Era subserviência demais. Contra os meus princípios.

E ainda, ainda uma grande amiga e minha irmã, minha própria irmã, já na noite do dia 3 me diziam pra ceder, pra escrever as tais cartinhas que não tinha nada demais. Realmente, por exemplo: o seu banco não te manda cartões de Natal personalizados?, às vezes assinados de próprio punho pelo seu gerente? É semelhante: é preciso saber como as coisas funcionam.

Isso foi o dia 3. E a melhor dica que tive, aparentemente, foi a de dizer a verdade. Que quero sentir qual que é, feel the thrill, just for the kicks. Porque foi o que fiz hoje. Ia naquela pracinha da Rue Mouffetard onde tem a Haagen-Dasz (?, não vou googlear) beber com um amigo que encontrei vezes demais nos últimos dias pra ser coincidência, ele atrasa ainda por cima, e vagando um pouco vejo uma placa: "CHERCHE : SERVEUR OU SERVEUSE - S'ADDRESSER À LA CAISSE".

Vou até o caixa e peço informações, digo que não estava lá pra isso e não tenho nenhum CV comigo mas que sim, que moro perto e posso ir buscar. Ando até em casa, pego 3 cópias pro caso de não dar certo e volto pro lugar. Explico, como sugereiram, a verdade: que acabei de terminar um Master, que sou gringo e que vou passar os próximos meses lendo no meu quarto pra minha tese, e que gostaria de ter um trabalho à noite (omito que ele durará exatamente um mês), pra falar francês do dia-a-dia e ganhar um pouco de dinheiro.

O gerente pergunta se sei trabalhar com bandeja. Pego na mão uma que está ao lado. Ele me pergunta se já fiz isso, e decido dizer a verdade: que trabalhávamos mais com copos individuais, como num pub. Ele diz que é pra saber se precisa me formar ou não. São 60 euros por noite, as gorjetas são minhas, chega-se às 16h30, come-se alguma coisa e trabalha-se direto até às 2h, sextas e sábados até às 4h. É preciso estar de camisa branca, gravata preta, calça preta e sapato preto. Importante ter uma pochete (na verdade, achei que era um avental, descobri depois que era uma pochete). Ele me empresta se não tiver. Farei um dia de teste, e depois vemos.

Saio com um papelzinho com as indicações e vou encontrar umas pessoas que nem conheço. Estou contente demais com essa coisa estúpida e tenho que me esforçar pra não ser inconveniente. Ficar feliz por trabalhar em Genebra, na OMC, realizando estudos fantásticos e negociando grandes somas internacionais, seria uma coisa. Ficar feliz por ser aceito como garçom, pra trabalhar mais que o limite legal e receber o salário mínimo, sem direitos, é um pouco outra.

Mas ah, como me alegra. Nem que seja só o dia de prova - mas me esforçarei tanto que não poderão me recusar! Vocês vão ver.

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17.9.08

O que é turismo

Pois é que hoje de manhã acordei e finalmente notei que estou recuperado das duas semanas sem dormir, das 178 páginas de reflexão sobre sanções internacionais que abandonei sem esgotar o assunto por falta de tempo e da tensão de não ter ido tão longe quanto gostaria. E lembrei também do Caçador que espreita espalhado em folhas A4 nestes 12,60m² de lucidez e em etéreas mensagens de e-mail de mim pra mim mesmo, que se morro ninguém nunca saberá a senha (exceto por meus pais, que terão sem dúvida o bom-senso de apagar tudo, há um motivo pelo qual coisas ficam sem ser publicadas e não é porque o autor queria esconder o que de melhor ele tinha).

Mas, mais importante, lembrei da minha conta bancária que está pra emitir o seu último suspiro de dinheiro ganho sentado entre cristal líquido, carpete, cafezinhos grátis e árvores desmembradas, caindo a cada segundo e se transformando em share pledge agreements, em convocações de assembléia geral extraordinária, em termos de quitação, poemas e quem sabe se bilhetinhos de amor. E verifiquei os últimos desastres excitantes sobre o Lehman Brothers e o Northern Rock e mais tantos outros nomes que se dá à rede de árvores desmembradas guardadas em arquivos cem ou duzentas vezes mais espaçosos que o lugar que habito, sufocadas no terceiro subsolo de algum prédio, protegidas pelo solo rochoso de Manhattan, por barras de ferro e trancas inacessíveis para mãos humanas, outorgando plenos poderes a rapazes com ternos de dois botões, gravatas de 7cm de espessura, sapatos de bico fino e pomada no cabelo para comprar e vender ienes de fevereiro de 2009, safras agrícolas da Geórgia em 2014 e tufões destruidores das casas dos cubanos em 2023, quando há muito a estátua de Fidel terá sido levada para o Metropolitan.

Pensei nas minhas opções, em como falar com o proprietário do apartamento sobre a saída definitiva, nos dias que seria necessário para realizar algumas transações e nos pulsos telefônicos que resolveriam todos os problemas, e tomei a única atitude razoável nas circunstâncias. Removi do meu curriculum vitae - do curso da minha vida, diria um latinista - três anos sentado redigindo contratos internacionais, seis meses atuando junto ao Poder Judiciário do Estado de São Paulo, 250 páginas de teoria jurídica, cargos políticos estudantis, um prêmio universitário internacional e dois artigos publicados. Em vez, coloquei experiências de verão em bares e restaurantes que chamei Casa da Cachaça e Copacabana Sucos. Imprimi dez cópias no mesmo lugar onde há uma semana imprimi mais de 1200 páginas e onde há um ano xerocopio reflexões de renomados teóricos de tantas áreas espalhados pelo mundo, para colori-las em verde, amarelo e laranja. Montei numa bicicleta às 21h00 de Paris numa quarta-feira e fiz a ronda dos bares da cidade onde tantas vezes já estive como consumidor, repetindo como uma antiga fórmula o mantra: "Bonsoir, est-ce que vous auriez par hasard besoin de quelqu'un pour travailler dans le bar?, comme serveur ou comme barman?", e daí começando diálogos mais ou menos frutíferos que podiam terminar numa recusa expressa, numa confissão de que ali trabalha apenas a família do patrão, na informação de que o patrão só contrata meninas ou num aperto de mão e promessa de ligação no dia seguinte.

E caminhava pela rua pensando na música que diz que as pessoas elas não entendem, as namoradas elas não entendem, nas espaçonaves eles não vão entender e eu então nunca vou entender, e naquele trecho fantástico do On The Road em que ele fala assim:

"We bent down and began picking cotton. It was beautiful. Across the field were the tents, and beyond them the brown cottonfields that stretched out of sight to the brown arroyo foothills and then the snow-capped Sierras in the morning air. This was so much better than washing dishes South Main Street. But I knew nothing about picking cotton. I spent too much time disengaging the whiteball from crackly bed; the others did it in one flick. Moreover, fingertips began to bleed; I needed gloves, or more experience. There was an old Negro couple in the field with us. They picked cotton with the same God-blessed patience the grandfathers had practiced in ante-bellum Alabama; they moved right along their rows, bent and blue, and their bag increased. My back began to ache. But it was beautiful kneeling and hiding in that earth. If I felt like resting I did, my face on the pillow of brown moist earth. Birds an accompaniment. I thought I had found my life’s work.

(...)

Every day I earned approximately a dollar and a half. It was just enough to buy groceries in the evening on the bicycle. The days rolled by. I forgot all about the East and all about Dean and Carlo and the bloody road. Johnny and I played all the time; he liked me to throw him up in the air and down in the bed. Terry sat mending clothes. I was a man of the earth, precisely as I had dreamed I would be, in Paterson. There was talk that Terry’s husband was back in Sabinal and out for me; I was ready for him. One night the Okies went mad in the roadhouse and tied a man to a tree and beat him to a pulp with sticks. I was asleep at the time and only heard about it. From then on I carried a big stick with me in the tent in case they got the idea we Mexicans were fouling up their trailer camp. They thought I was a Mexican, of course; and in a way I am."
E era apenas isso, não há ninguém para entender e eles pensarão que eu sou um mexicano, e de certa forma eu sou é claro. Mas de outra forma não, não é mesmo? Pois acima dos lagos, acima dos vales, das montanhas, dos bosques, das nuvens, dos mares, há um futuro onde a máquina do mundo se abre majestosa e circunspecta, chamando-me para seu reino augusto afinal sumetido à vista humana, e nesse futuro não serei um mexicano nem um marroquino nem um maliano. Por isso é tão importante dizer que sim, que trabalho em período integral se necessário e até mais, que não preciso de papéis nem nada e que posso ficar inclusive até mais tarde. E tenho sorte, pois meu grande trunfo são exames que fiz para pedir entrada em paraísos educacionais que custam o dobro do que ganharei.

Então, depois de duas horas realizando essa atividade de soltura no mundo, voltei para minha casa que fica na Montanha de Santa Genoveva, entre a cidade, com as suas agitações e aventuras, e o céu, em que as estrelas pestanejam. É preciso tentar, ao menos uma vez, enviar cartas a esmo e verificar se há efetivamente alguém do outro lado, em vez de apenas bater a senha que vem sendo transmitida há gerações. É preciso não saber a senha e dizê-la mesmo assim, ainda que nos seja proibido, ao final, entrar no mundo de Alice ("If you men only knew!") pois nunca havíamos sido convidados.

Se tudo der certo então, poderei em breve expor em quê ser advogado difere de ser garçom. Aguardem.

1.9.08

Eu preciso

Fiz até voto de silêncio e etc, mas preciso explicar isso. Imaginem isto escrito num pacote de queijo ralado:

"SEU 2° QUEIJO 100% REEMBOLSADO

Para obter seu reembolso (sobre a base do mais barato dos dois produtos, no limite de €4,50), você só precisa comprar simultaneament dois queijos ralados Entremont portadores desta oferta (idênticos ou não) e enviar em 21 dias da data da sua compra (afora domingos e feriados) : seus sobrenome, nome e endereço sobre papel avulso, os dados de sua conta bancária os códigos de barra recortados, o original da nota fiscal (data e quantidade de compra dos dois produtos comprados) e os dois anúncios de oferta promocional presentes nas embalagens (a recortar). Enviar tudo em envelope com os selos correspondentes o mais tardar em 24.12..08 à meia noite (selo dos Correios fazendo fé) a :

ENTREMONT 2° ralado 100% reembolsado
CEDEX 2867 - 99286 PARIS CONCOURS

Reembolso exclusivamente por depósito bancário e em 4 semanas. Custos do envio não reembolsados. Todo pedido ilegível, incompleto, enviado após a data ou não respeitando as condiões da oferta será considerado nulo. 1 único reembolso por família (mesmo sobrenome, mesmo endereço, mesma conta corrente). Oferta reservada à França metropolitana (Córsega incluída)."

Esse é o país em que eu estou morando, entenderam?