30.11.06

Topográfico




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É dia de semana e meu avô me telefona,
deseja almoçar no Hilton.
Tomávamos brunchs no Hilton,
nossos domingos em família;
também em outros locais,
sempre porém no topo.
Ele sempre escolhia edifícios altos
no Centro, de onde, longe das ruas,
respirava-se o progresso
na cidade topográfica.
Algumas vezes, das janelas
viam-se colinas por trás dos prédios,
o pouco que temos de horizonte.

Caminho até a Avenida Ipiranga.
As pessoas nas ruas cobrem-se
de casacos ou enrolam-se em cobertores.
Chego à porta ao meio dia
e o Hilton fechou, me informa um porteiro
sem a antiga farda azul-marinho,
o Hilton mudou-se, deixou seu endereço no centro
para uma localização privilegiada.

Também eu deixarei em breve
de atravessar todos os dias
a rua Boa Vista, deixarei os camelôs
e os restaurantes antigos
e teremos uma imponente fachada
às margens do rio,
com localização privilegiada
e janelas que não abrem.

Não sei se pelas janelas do novo Hilton se vêem as colinas
que existem para além da metrópole
ou se há apenas os bonitos edifícios da marginal
como aquele no qual estarei.

Mas sinto que a cidade, como eu,
veste lentamente um terno cinzento
e vai se enforcando aos poucos,
cada dia de uma cor.

29.11.06

Samsara

ao enigma
...........do mundo
sorriu
...........sibilino
o sábio
...........sibarita

sentado
...........respondeu
não com
...........a esfinge
mas com
...........o esfíncter

Joana

Joana tinha um gatinho

Que se chamava Gael

Um dia Gael fugiu

Joana ficou tristinha

Pegou a arma do papai

E estourou os miolos do irmão

Persistência da memória

Bem onde agora é essa rua
entre as duas paineiras – e
tinha uma terceira bem ali –
ficava uma praça, sempre
que passo elas (as árvores
gigantes) me lembram
do caminho da escola
que fazíamos a pé
– ou então ficar olhando
pelo vidro as pessoas debaixo
esperando a chuva passar.
E encostado na da direita
tinha sempre um aleijado
vendendo chiclete e dando risada,
e nós desviávamos dele, primeiro
por medo e no fim por hábito
mais do que por medo.

E sempre nessa época
parávamos aqui para brincar
com a paina que brotava delas
e caía, atirando uns nos outros
a lãzinha branca e correndo.

Engraçado vê-las
florescendo agora
como todos os anos
e a gente passando,
sempre tão ocupados
no caminho do motel.

28.11.06

retrospectiva 2006

















Khatija

“La mer dont le sanglot faisait mon roulis doux
Montait vers moi ses fleurs d'ombre aux ventouses jaunes
Et je restais, ainsi qu'une femme à genoux...”
A. Rimbaud


Ao oceano, devia uma vida.
Não só a casa, o peixe e as algas,
o pouco luxo das pérolas em dia de festa.
Uma tarde, também as ondas
lhe trouxeram um lar,
num francês de olhos verde-jade
perfurando a pele de areia.
Àquele mar de cores profundas
devia a prole mestiça, e uma aldeia,
como tantas outras aldeias,
escrita no espelho trêmulo daquelas ondas.

Mas gravado, refletido
e retransmitido infinitamente,
mentia ao mundo
o opaco cinzento de um olhar seu.

Como odiar aquele mar? Como desejar-lhe
o menor mal que fosse?
Quando, cobrindo de azul a terra,
a casa e a vida,
soube ainda ser gentil?
Se, ao saldar as dívidas,
de todo o devido deixou-lhe, flutuando
sobre o caos espiral dos vagalhões de espuma,
um berço
e o filho caçula.

Dragão na janela

Letícia

Ziguezagueando, a vida
suspensa no pouco espaço
entre as mesas de um
qualquer barzinho
de segundo andar,
Letícia confia
no sorriso fácil
nos cabelos soltos
e quase que se ouvem
alguns sobressaltos
de quem embalado
talvez pelo samba
tocado de canto
se deixa ao acaso
perder no balanço
do seu caminhar.

Com o meio salário
deixado sem pena
no cabeleireiro
e a roupa escolhida
cuidadosamente
nas horas passadas
em casa no espelho
Letícia faz graça
e parece dançar
(se veste, parece,
como quem vai sempre
à espera de alguém).

Só os saltos já gastos
mirados de perto
desmontam a fêmea
montada com esmero
e deixam de leve
entrever a menina
por baixo do lápis
despida dos brincos
rezando baixinho
de volta pra casa
na outra manhã.

(mas fica a carinha
de quem larga o corpo
e derrete nas mãos)

Estilhaços

Restaram espalhados por
costas e dedos e lábios
alguns estilhaços teus.
Rebeldes, repuxam e
(controlados por não sei
que fios invisíveis)
determinam às vezes um
movimento repentino de braço
ou de dedos ou lábios.

Não me preocupo se alongam
as noites - mãos e pernas à procura
do teu corpo sob lençóis
intermináveis - nas quais
(aguardando ou o sono ou a manhã)
me pergunto displicente quando
estes teus vão acabar por se juntar
aos outros tantos estilhaços
que carrego (de uma antiga escola,
um amigo desaparecido, alguma
cidade noutro canto do mundo)
e em breve me lembrarão apenas
de mim mesmo, dos meus doze
ou vinte ou cinqüenta anos.

O que apavora, o que transforma
madrugadas e dias insones em batalhas
contra a tua lembrança pregada à carne,
não é essa previsão, de mais um
fragmento de passado entre tantos,
mas a oposta: teus estilhaços
a permanecer sempre assim,
as pedras brancas num
caleidoscópio, e eu a encontrar,
ainda surpreso, a tua ausência
a cada movimento impensado
de braço (ou de dedos ou lábios),
a cada olhar que, involuntário,
pousa no vazio.