23.12.06

Poema para o natal

Acho que estou indo mais rápido que vocês. Não sei se estou indo rápido o bastante. Nosso tempo tem esse problema, não é mais o mesmo rio, não adianta. De forma que não posso fazer um poema de Natal, preciso fazer um poema para o natal do ano de 2006, passado no verão paulistano, quando chove lá fora e meu pai dorme na sala. Mas isso vocês já sabem. Deixa tentar dizer algo que vocês não sabem.

vitória

parece que você
se parecia com ana
cristina.
procuro na internet fotos,
ver se tem os mesmos olhos,
o mesmo riso.

não encontro. ana cristina
só sorri de lado, de frente
é séria e tem cabelos curtos, dos olhos
não se sabe a cor. hilda hilst encontro,
varanda e gatos, um riso
de velha, dedo em
riste e cigarro na mão.

hilda, dizem, foi em
seu tempo a mais bela, mas
ana cristina venceu
mais essa. atirou-se
da janela
e nunca mais envelheceu.

22.12.06

Predestinação

Disse aqui outro dia que precisava de um post só pra ele o prefácio do Mário de Andrade ao livro de estréia do meu avô, Predestinação - que o Paulo Ferraz acha que podia bem se chamar Prestidigitação, com um pequeno ganho. A história é que o estudante Geraldo Vidigal, 22, encontrava-se na Itália em 1944, assim como vários outros estudantes da Faculdade de Direito do Largo São Francisco - não por coincidência: por serem conhecidos agitadores anti-getulistas. Outros tempos, em que o interêsse nacional era debatido sem que as partes levantassem uma HP 12C sequer.

Acho que os dois últimos parágrafos são o que pega, mas vejo agora que tem utrecho anterior que, engraçado, dialoga com o último post:

"Alegria não agüentou mais. Levou o trompaço da vida. Já viveu a experiência do Nove de Novembro anterior, e viu ao seu lado um colega morrer assassinado. E a visagem da guerra na Europa já o predestinara nos ecos amargos dos Urais, no Vesúvio, na Mancha; e em janeiro dêste ano o poeta pulara da cama, alertado ao clarim do Sargento Negro. Geraldo se prepara pra partir, vestido de soldado. E num de seus poemas mais recentes, escrito já na Itália, 'diante do mundo que se desatina', êle se dá êste conselho desolado:

"Pensa melhor! Guarda as estrêlas
Que doidamente malbaratas!
Não mostres a alma das cascatas
A quem não pode compreendê-las".

Mostra, Geraldo, mostra sim a alma das cascatas aos homens. Quando mais não seja, como uma recusa clamorosa ao mundo que vai por aí.
(...)
Geraldo Vidigal é mais um exemplo de que êsse mundo está errado. O jovem poeta poderá ser sacrificado por causa disso. Uma esperança promissora poderá se transformar apenas num 'eco amargo'. A ferocidade atual das guerras tem mais isso de inconsolável que tanto mais se mecanizam, mais exigem moços, bem moços, donos de corpos virgens que possam resistir à brutalidade da máquina. Já se foi o tempo em que pra guerreiro se escolhiam quarentões escolados, gente da idade egoísta que não expõe a vida à toa. Hoje as guerras pedem o soldado novo, gente da idade generosa que troca a vida por uma flor vermelha na testa. Monsieur Malbrouch não vai à guerra mais. Vai-lhe o pajem, que não trará consôlo às castelãs.

Geraldo Vidigal é mais um exemplo de que êsse mundo está errado. Mas quem não sabe disso! Sabem disso até os donos da vida que o querem e fazem assim errado, em seu proveito pessoal. Só que Geraldo Vidigal é um exemplo insuportável disso. Porque é um poeta.”

E aí, o Mário é foda ou não?

21.12.06

Sobre as aparências

Uma das coisas mais complicadas nessa história de blog é que, como disse nossa amiga Tânia Pan outro dia sobre uma hipotética carta de Tarô chamada "O blog",

"O blog representa não aquilo que você é, mas aquilo que você gostaria que os outros pensassem que você fosse"

Claro que isso pode ser estendido sem problemas pro convívio social como um todo - ninguém aí, espero, acha que é livre. Mas quando se põem as coisas por escrito, assim na internet, tudo complica. Por sorte, acho que aproximadamente 100% dos meus leitores são amigos, de forma que a preocupação é apenas futura, ou seja, e se algum dia nos descobrem por aqui?

Isso tudo pra dizer que eu bem que gostaria, muito mesmo, de conseguir fazer poemas como aquele do Brecht, uma crítica social ácida e irônica, um poema atacando as bases da sociedade, destronando reis feito uma nova marselhesa, pra ser citado nas cartilhas escolares e tal. Só que na verdade tenho um medo danado dos flertes com a babaquice, e entre o leminski que quer ser enterrado com os trotskistas e o que põe sal na sopa, acabo ficando com o segundo, talvez conformisticamente achando que chutes de poeta não levam perigo à meta. Esse aqui, do meio deste ano, é só mais um pouco dessa coisa de quem, tão convencido da própria inofensividade, nem se anima mais a chutar.

***


Mas esses seios cinematográficos, você me dizia,
esses seios vieram só aos 23.

E um pouco do teu mistério se desvanecia.

.

18.12.06

Caçador

Uma das coisas mais interessantes de ter um blog é tentar revisitar alguma coisa antiga, atualizar, mudar tudo, e chegar à conclusão de que o melhor a fazer é deixar praticamente como estava. No meu registro, a 1ª versão desse daqui é 26.9.2005.

Caçador

Quase um ano depois
e esse cara ainda me olhava
feito um pequeno vira-lata
.....o feroz guardião
.....de um passarinho morto.

Mas minha caça era outra
espalhava-se pela cidade
e apodrecia distraída
entre noites maldormidas

enquanto
.....atravessado
.....das luzes turvas
.....de outras noites
.....(mas
.....súbito afogado
.....num único pensamento)

eu só me perguntava o porquê
de você ainda usar
essa maldita blusinha de couro.

.

15.12.06

MANIFESTO DA POESIA ALHEIA

Diante do sucesso de um alheio do Paulo Moura postado pela Ana Rüsche no Peixe de Aquário, deixo aqui para visitação pública, conforme publicado na FNX XIX, o inigualável


MANIFESTO DA POESIA ALHEIA



“a verdade, cuja mãe é a história”
Pierre Menard


1. a poesia já está pronta no mundo, cabe ao poeta apenas identificá-la.

2. em todas as artes visuais e auditivas já se notou que é possível encontrar poesia (poetik) pronta no mundo, bastando ao artista registrá-la. a poesia escrita, versificada (dichtung), permanece presa à concepção de que o artista precisa acrescentar algo de seu ao real para transformá-lo em arte.

3. um fotógrafo não cria a cena de sua arte. ele tem a sensibilidade de captar com suas lentes o momento, o gesto, a expressão, a luz – a poesia. a poça, o café, a paisagem, a criança, o engravatado, são todos ready-made.

4. como o fotógrafo, o poeta alheio tem ao seu redor as paisagens dos textos e, em sua leitura, a sensibilidade para captar a imagem poética. ele apenas a enquadra em versos, dá, se necessário, o foco com sua pontuação e, finalmente, sugere ou explicita a imagem com um título.

5. a idéia da poesia criada, da poesia-inovação, não é apenas um preconceito – é um preconceito moderno. a antigüidade sempre reconheceu a mimesis como poiesis. não há imitação sem criação. todos os grandes épicos foram criados sobre outros textos, recriação de tradições orais ou de outros épicos.

6. a poesia alheia traz em seu bojo a superação do conceito moderno de originalidade. os gregos atribuíam a um indivíduo – homero – a autoria de textos que hoje são considerados obra de todo um povo, e foi só a partir dos helenísticos que se enraizou a necessidade de destaque do autor concreto de uma obra. hoje indivíduo e originalidade parecem ser elementos indissociáveis do conceito de autoria, daí a denúncia feita pela poesia alheia.

7. a poesia alheia surge como um movimento literário pós-moderno, fundado na superação do indivíduo autônomo burguês, também conhecido como moderno – ficção romântica calcada no culto ao gênio, na busca de metanarrativas totalizantes, de verdades abstratas e valores universais. para isso vieram com a bravata da “originalidade” e da “novidade”.

8. a poesia alheia não se pretende um ismo, ou um ismo a mais: ela se afirma como poesia alheia, e não como alheinismo, e seus poetas, alheios e não alienistas.

9. o poeta alheio não cria as formas da poesia que faz – o poeta alheio é aquele que identifica/localiza a poesia existente. todo poeta deve ser mais fabulador do que versificador, porque ele é poeta pela imitação e porque imita.

10. como dizer que um poema é seu? se a poesia está é nos olhos de quem a descobre. se a poesia já está pronta no mundo. se nada há que seja novo debaixo do sol. como dizer que um poema não é seu?

11. o trabalho braçal não é condição essencial para a poesia alheia. a descoberta pode ocorrer num texto sem que este tenha necessidade de ser modificado. o trabalho pode se dar apenas nos sentidos e significados, sem que uma única vírgula precise ser mexida.

12. a simples atribuição de um novo sentido até então desconhecido ou a colocação de algum verso num contexto até então impensado pode constituir um poema. por acaso os versos têm lacre de segurança? uma vez usados, não podem ser reutilizados?

13. o poeta alheio não faz malabarismos com palavras. o mérito do poeta alheio não está em criar, está na descoberta. mede-se um poema alheio pela qualidade da descoberta. descoberta, redescoberta, rerredescoberta e todas as outras descobertas são poesia, tantas vezes quantas forem as inúmeras descobertas.

14. a poesia alheia é a descoberta do poético no texto alheio. é dever do poeta que a descobre revelar essa poesia. não aproveitar a poesia presente no mundo não é apenas um preconceito: é um desperdício.

15. duas entrevistas alheias:

WOB - octavio paz, gostaríamos de saber sua opinião sobre a polêmica de a poesia alheia ser um passo atrás em relação às vanguardas que pregavam a ruptura e a invenção.

OCTAVIO PAZ - al negar la tradición, la prolongamos; al imitar a nuestros predecesores, los cambiamos. la imitación es invención: la invención, restauración. (cf. convergencias. barcelona: seix barral, 1992. p. 147)

WOB - josé paulo paes, e o senhor, como entrou nessa de poesia alheia?

JOSÉ PAULO PAES - eu me lembro que quando descobri o bandeira, vi um anúncio de um batom que dizia assim: de lábio em lábio, dou a volta ao mundo. pronto, pensei, é só você colocar don juan, no título, e você tem um epigrama direitinho. de modo que, tendo os olhos e a sensibilidade em estado de alerta, você pode captar o poético a todo momento. (cf. revista cult n. 22, maio de 1999)

então, seguindo o conselho do mestre, como seria o tal poema:

DON JUAN

de lábio em lábio
dou a volta ao mundo


16. nenhum texto está a salvo de conter poesia. pode-se fazer poesia alheia roubando uma frase dentro do ônibus, um aviso em bula de remédio, um texto de pound. exemplo:

TESOURO DOS CZARES

o depósito antigo
de coisas preciosas
de cujo dono não haja
memória será
dividido por igual
*


17. não existe estelionato poético. direito autoral? plágio? acima deles a carta magna: “a propriedade atenderá sua função social”. há verdadeiros latifúndios poéticos prontos para terem seus tesouros revelados pelos poetas alheios e há poetas alheios latentes em todos, non sibi sed bono publico – não para si, mas para o bem público.

18. a verdadeira atividade criativa (e a proteção autoral pressupõe isso, uma “criação do espírito”) estaria em quem encontrou o poético no texto, e não no texto em sua versão original.

19. ata do copom, bula de medicamentos de tarja preta, manual de instruções do vídeo cassete, editorial de jornal sobre os rebeldes maoístas no nepal, descrição do ciclo migratório das enguias do atlântico norte, gramática normativa da língua portuguesa, sala de bate-papo da internet, fórmula matemática para descobrir números primos, errata de livros mal revistos, resenha de crítico de arte, constituição federal, laudo do iml, e-mails de spam, uma entrevista do lula: em tudo há poesia.

20. garimpai!

wallace o’brian
piratininga, 22 ou 23 de janeiro de 2005



* Cf. Código Civil de 2002, art. 1.264.1.




14.12.06

Indiferença

Este aqui é do meu avô, que ainda é Geraldo Vidigal, mas o tempo dirá. Geração de 45 - mas eu não teria escrito melhor, vejam só.

Indiferença

A mim, porém, que me importa?
- Eu só conheço Alegria!

Uivem os lobos embora,
Chorem crianças, embora,
Matem-se os homens, irados:
Eu só conheço Alegria.

Que me impota o que aconteça
Se os dados foram lançados?
Se eu escolhi minha vida?
Ninúém me muda de estrada,
Ninguém me vira a cabeça!

Mas não me falem de nada.
Mas não reabram ferida
Que tanto punge e magoa:

Eu escolhi Alegria...
Não me despertem à toa:
Nunca me falem de nada!


***

E aí, o que vocês andam escolhendo?

(não costumo dedicar, mas desta vez vai pro nosso querido Presidente Lula. Também pro Mário de Andrade, por ter prefaciado o livro primeiro do poeta que naquele momento ainda estava na Ítália entre os tanques, "Predestinação". Esse prefácio vale um post sozinho.)

12.12.06

Poema (tardio) para Plutão

Um pouco a ver com o Notícias do Vácuo, publicado pelo medianeiro Fábio Aristimunho Vargas, e na cola de outro, da Dani Ramos[link corrigido]. O nome fica auto-explicativo, e acrescento: é o primeiro original (nada original) jogado direto aqui, sem test-drive. Se precisar, fazemos recall.

[Editado em 14.12.2006: A Victoria Saramago, ou o quarto de hotel que baixa nela de vez em quando, também fizeram a sua parte. Mas alerto a leitora desatenta: trata-se de prosa]

***

Poema (tardio) para Plutão

Perdemos um planeta
Mas que é um planeta?

Neste momento há galáxias sendo engolidas
matemáticos indianos fabricam dimensões impensáveis
na África, minas terrestres participam alegremente das guerras tribais
e há um Deus que zela por nossos excessos gastronômicos.
O que é um planeta?

Perdemos um planeta
decidiram, sob forte polêmica,
aos 24 dias de agosto de 2006.
Astrônomos e astrólogos atropelam-se em explicar
As sondas americanas continuarão levando em conta, dizem,
a deformação gerada por aquele corpo no espaço
e as escorpianas poderão manter seu padrão de comportamento.
Não será necessário adiantar ou atrasar os relógios.

Agora sentimos tua falta, nós que nunca o vimos,
que apenas agora conhecemos brevemente tuas propriedades de planeta anão,
como um pequeno país no qual está ocorrendo uma guerra
e do qual nos informam geografia, religião, etnias.
Em 76 anos de vida, quantos poemas te foram dedicados?

Em alguns anos, não te lembraremos,
todos os atlas terão sido atualizados
e as crianças não aprenderão teu nome na escola.
Mas diante da notícia, preocupamo-nos;
na perda, lembramo-nos:
somos os próximos.

Em silêncio, Saturno devora o primeiro dos seus filhos.

.

9.12.06

O jogador e o cavalheiro

Para o fim-de-semana, um desses trechos que precisam da obra mas mesmo assim pegamos pela mão e levamos sozinhos para conhecerem outras pessoas, pensando que elas irão se beneficiar - quando na verdade elas têm sérias tendências a copiar e colar no profile; dialoga um pouco com o que disse certa vez o Del nos Doces Enjoativos.

"O que havia de mais feio, ao primeiro relance, em toda aquela corja de jogadores, era o respeito pela ocupação, a seriedade e, mesmo, a deferência com que todos assediavam as mesas. Eis porque ali estava demarcada nitidamente a diferença entre o jogo chamado mauvais genre e outro permissível a uma pessoa decente. Existem dois tipos de jogo, o dos cavalheirops e o dos plebeus - este repassado da avidez do lucro, o jogo de todos os pulhas. Ali, isso estava rigorosamente diferenciado; mas como esta diferença é, na realidade, ignóbil! Um cavalheiro, por exemplo, pode apostar cinco ou dez luíses de ouro, raramente mais; aliás, pode apostar mesmo mil francos, no caso de ser muito rico, mas unicamente pelo jogo em si, por divertimento apenas - em essência, para verificar o processo de ganhos ou perdas; mas de modo nenhum se deve interessar pelo próprio ganho.
(...)
Um cavalheiro de verdade não deve ficar nervoso, mesmo no caso de perder toda a fortuna. O dinheiro deve ficar abaixo da condição do cavalheiro, de tal forma que não valha a pena preocupar-se com ele.
(...)
Todavia, às vezes não é menos aristocrático também o comportamento oposto, isto é, notar, prestar atenção, mesmo examinar, com um lornhão, por exemplo, toda aquela canalha: mas que não seja de outro modo a não ser aceitando toda aquela multidão e aquela imundície como uma distração de caráter especial, uma representação urdida para entretenimento dos cavalheiros. É admissível acotovelar-se em meio àquela multidão, desde que se olhe em torno com absoluta convicção de que se é apenas um observador e não parte do conjunto."


Fiódor Dostoiévski, Um Jogador, trad. Boris Schnaiderman

Hoje tem Rave Cultural na Casa das Rosas, das 18 às 7. E aí?

7.12.06

Chamado

Maçã que fica valendo por ontem também, maior por causa disso - mostrar pro médico que não estamos de brincadeira. Uma tentativa de 2003, publicada especialmente pra Manu, que fica difamando por aí que só consigo escrever que nem advogado. Como já é trabalho, comentários sobre o universo ficam pra depois.

***

Chamado

A Charles Bukowski

virei de lado na cama para o sol parar de bater nos meus olhos mas aquela luz continuava insuportável e então abri os olhos e precisei de uns cinco minutos para entender o que estava acontecendo, e o que estava acontecendo é que havia uma BOLA DE FOGO queimando mais ou menos um metro acima da minha cama. um troço redondo do tamanho de um punho parado em pleno ar, queimando na minha frente.

o teto já estava um pouco chamuscado e eu não fazia a menor idéia de quanto tempo aquilo tinha ficado por ali e realmente não me lembrava de haver feito nada na noite anterior que pudesse de alguma forma provocar uma combustão constante no meu quarto. fiquei esperando que a coisa se mexesse, falasse comigo ou sei lá o quê pelos quinze minutos seguintes, e como não aconteceu nada só tratei de tirar os objetos inflamáveis de perto e ir tomar um banho.

fiquei pensando se aquela coisa era um sinal ou algo assim, e como não cheguei a conclusão alguma sobre aquilo resolvi procurar alguém. quase ninguém acreditaria, é claro, se eu dissesse que havia uma esfera flamejante bem no meu quarto, ainda mais porque eu morava no décimo andar e não havia nenhum motivo para uma coisa dessas aparecer a 300 metros de altura. a não ser que seja algo como um mosquito que acompanha o elevador quando logicamente ele deveria ficar maluco dentro de uma caixa que se mexe para cima e para baixo.

então a pessoa que procurei foi um padre, ou algo assim. o Rique. Rique e eu tínhamos estudado juntos no colégio, e sempre tivemos uma rivalidade porque simplesmente em meio àquele bando de merdas naquela escolinha medíocre tínhamos certeza que um de nós dois ia ser o cara que se deu bem na vida, mas que não havia espaço para dois caras daquele lugarzinho. então disputávamos em tudo por esse motivo que depois se revelou imbecil, já que os dois nos fodemos, só menos que aqueles caras que casaram antes de terminar o colégio e se condenaram a uma vida de empregos estáveis e programas de tevê apelativos.

daí que, ainda no colégio, aconteceu de eu começar a namorar essa menina e descobrir logo em seguida que o Rique era apaixonado por ela, tinha mandado cartas e tudo. nunca nem falamos sobre o assunto, e depois de um tempo a menina teve problemas com drogas e se mudou para o Peru, mas é lógico que ele nunca superou essa derrota pra mim, porque entrou para uma dessas seitas malucas com reuniões secretas e amuletos mágicos e nunca mais saiu. e eu nunca teria ido procurá-lo por qualquer motivo exceto se uma coisa absolutamente inverossímil acontecesse, por exemplo eu acordar com uma bola de fogo no meu quarto.

encontrei Rique no buraco onde funcionava a igreja deles, enfiado num vestido preto e vermelho e bebendo um negócio nojento que ele me ofereceu, e ele me pareceu realmente numa boa apesar de tudo em volta cheirar muito mal e ele parecer não comer nem ver a luz do sol há alguns dias.

quando eu entrei Rique me olhou como se eu fosse lixo e eu sabia que isso não era nenhum problema pessoal porque depois da conversão ele só olhava os outros como se fossem lixo, sempre. todo atrofiado metido num lugar nojento sem nenhuma ambição, sem conversar com ninguém exceto aquele bando de malucos que passavam o dia falando sozinhos e inventando rituais cretinos e olhava para as pessoas que estão vivendo as próprias vidas como se fossem lixo, mas eu sabia que isso não era nenhum problema pessoal então fui direto ao ponto.

"apareceu uma bola de fogo no meu quarto. em cima da minha cama. está lá desde de manhã. não faço a menor idéia do que seja, e pelo que eu sei de física essas coisas não acontecem."

Rique respirou fundo, "senta", e pareceu triunfante e compreensivo como se eu tivesse acabado de entrar de joelhos pedindo para ser salvo dos meus pecados, ou como se todos os dias ele acordasse com uma maldita bola de fogo em cima daquela esteira de palha e eu finalmente tivesse compreendido.

"escuta, eu não vim aqui atrás da sua orientação espiritual, certo? quero resolver o meu problema e você é a pessoa que eu conheço que eu imagino que possa fazer isso. você sabe que eu não acredito nessas coisas e também não tenho a menor paciência pra elas."

Rique deu mais um gole naquele negócio dele, pelos olhos estava realmente alterado e não dava pra saber se era alguma droga ou se tinha ficado assim mesmo. ficamos sentados ali uns quinze minutos enquanto ele balbuciava coisas e bebia daquele troço, até que ele se levantou e se ofereceu pra ir comigo ver o que tinha acontecido.

entramos no apartamento e a coisa ainda estava ali, Rique olhou e como se soubesse o que estava fazendo acendeu um incenso naquilo e me mandou esperar. Girava as mãos em volta do negócio e jogava pozinhos coloridos, a cena era muito mais caricata do que eu podia imaginar daquela religião dele e eu fui abrir uma cerveja. aquele dia já tinha dado no meu saco e agora eu tinha uma bola de fogo, um quarto sujo fedendo e um lunático que eu mesmo tinha levado até ali, e só queria poder beber e cair naquela cama sabendo que tudo ia se resolver e eu teria uma ressaca normal no outro dia.

depois da quinta garrafa ele parou de examinar a coisa e veio falar comigo, e disse um monte de bobagens sobre sinais místicos e Deus tentando tocar a minha alma por algum motivo, e perguntou coisas sobre minha vida pessoal. depois de mandá-lo se foder, perguntei se ele tinha algum jeito de levar aquilo embora pra tocar a alma dele, e como ele disse que não pedi pra ele ir embora que eu ia resolver sozinho.

àquela altura eu já estava extremamente irritado e tentei de todas as formas acabar com aquilo, atirei água e usei o extintor de incêndio e o cobertor, mas nada parecia abalar a coisa e tudo o que consegui foi piorar o estado do meu quarto e eu precisaria de pelo menos mais três vodcas pra conseguir dormir naquilo.

desci as escadas puto da vida, pensando em como ia fazer com toda aquela situação caótica e que se Deus existe realmente ele não faz a menor idéia de como tocar a alma das pessoas, e não tem critério de seleção absolutamente nenhum. então liguei pra uma garota que conhecia e pedi pra dormir na casa dela aquela noite, tinha tido problemas sérios no apê. não, sem polícia, nenhum problema grave, só ia parar de pagar o aluguel no dia seguinte, por justa causa.

.

5.12.06

An apple a day

Tem um antigo ditado inglês, "An apple a day keeps the doctor away". Aprendi logo bilíngüe, "Pomme du matin éloigne le médecin". Quem sabe um dia tento traduzir, naquele esquema poundiano. Aceito sugestões. O que importa aqui é aquilo que nos meios diplomáticos se deve contar como piadinha de salão aos calouros, com um nome pomposo tipo 'Ressalva Churchill', em alusão ao autor presumido (nunca é certo, bem sabe o Veríssimo):

"An apple a day
keeps the doctor away
- if your aim's good enough"

ou, vertido,

"Pomme du matin
éloigne le médecin
- si l'on vise bien"

Importante mesmo é tirar a lição certa: a sábia mãe natureza instila em seus frutos qualidades que nossa vã mais moderna tecnologia nunca poderá sonhar.

Então vamos ver quantas maçãs tem no estoque. Esta vai sem título - melhor que colocar qualquer coisa em outra língua como assopra inocente o pequeno demônio atrás dos óculos de acetato roxo -, acho que entra pruma série "Persistência da Memória".


***



Permanece algo incompleta,
suspensa no tempo feito o
quadro de Borges, vazada
de espaço como no cubo
oco de Gullar, a carta
sem resposta: admitimos
que existe de algum modo
(e de algum modo talvez
mais que as tantas cartas plenas
que se escrevem neste mundo
com começo, meio e fim)
mas nos atinge mais pela
falta que pela mensagem
perdida. E pelo vazio
atrai - nos faz um pouco
mais humanos (e talvez
mais capazes de promessa).

.

4.12.06

Só pra garantir a euforia inicial

Mais desses curtinhos não-sei-não-mas-se-publicasse-entrava-por-w.o., assim as pessoas que vierem parar aqui por acaso saídas do blog da Ana Rüsche, que vem fazendo propaganda, não bocejem tanto.


Decisão

Pois por mim pode é cair
um avião atrás do outro.

Minha reunião é em Brasília,
é quinta de tarde, e ponto.


(adendo post-scriptum: afinal de contas, um blog jovem pode, e deve, ser agitado, eufórico; é do seu ethos de jovem ser assim. Daí toda a graça de ter nascido velho demais.

Mas, mais que jovem, o pequeno dragão na janela tem sobre o resto de nós o ser uma coisa, como eu dizia aí embaixo - e nisso me apóia, leio agora, Debord: "...e a juventude, a mudança daquilo que existe, não é de modo algum propriedade desses homens que agora são jovens (...). São as coisas que reinam e que são jovens; que se excluem e se substituem sozinhas" (62). Não vale mais, então, nosso filósofo que dizia: os mortos governam os vivos)

.

3.12.06

Ainda a passante

Talvez nesse post pra zerar eu tenha carregado demais no tanino. Coisas de iniciante. Voltemos aos versinhos, então, pra começar com o pé certo. Esse tem algum tempo, e acho que o título fica sendo esse em cima, mesmo, embora sujeito a mudanças. Não desistam ainda.

***

Ainda a passante



tenho ciúmes desse teu chefe

eu

que mal te conheço

.

1.12.06

Assumindo as coisas - o Dragão na Janela?

Paralisando um pouco a avalanche de estrofes dos últimos dias, penso que vale tomar o controle com um aparte sobre a situação geral. Este espaço, como já começa a se tornar perigosa moda, é herdado - ou adotado, dependendo da consideração que se tenha por ele. Não foi criado por mim, o que me dá o privilégio de não ter de lhe escolher um nome e, mais importante, de explicar esse nome.

Quanto ao título propriamente dito, "Dragão na Janela", limito-me a garantir que a expressão remete a um episódio da desgastada história da incomunicabilidade humana, a qual apropriadamente não pode ser explicada por escrito com facilidade. Demandaria mais trabalho do que merecem os olhos do leitor, sem contudo esclarecer qualquer coisa além do óbvio - toda escolha é arbitrária. Anoto que pretendo mantê-lo, já que, além da prontidão, tem a vantagem de ser altamente mnemônico e, o fundamental, pretensioso apenas o suficiente.

Explico: na contemporaneidade, todos estão de acordo que um texto escrito não é em essência diferente de um sorvete, um frasco de xampu ou mesmo das próprias aparência, personalidade e preferências literárias de cada indivíduo. É, em síntese, um produto que deve ser consumido pelos demais, e que está sempre em disputa com outros produtos pelo cada vez mais escasso tempo do consumidor. Aplique-se essa tese igualmente ao sabão em pó, aos relacionamentos amorosos e às pretensões políticas, e temos já todo um livro. Dependendo do enfoque e da elegância do estilo, pode-se levá-lo à prateleira da sociologia ou à da auto-ajuda. O tipo de imagem que se deseja criar para o seu eu interior é que definirá qual das duas.

De maneira que a primeira forma de dar preponderância ao seu produto sobre os demais é, indiscutivelmente, garantir-lhe uma aparência simultaneamente chamativa e agradável. O aforismo de referência, aqui, seria "a primeira impressão é a que fica". Não se sugere, obviamente, o abandono das próprias convicções; trata-se apenas da necessidade de adaptá-las ao gosto do público, apresentá-las de maneira mais cativante - embora nunca abandonando suas verdadeiras qualidades. Nesse aspecto, quando tudo o mais parecer falso, sempre é bom lembrar: até o McDonald's desenvolveu hambúrgueres vegetarianos para conquistar o público indiano. Não por isso deixou de ser o McDonald's, e não é impossível que em alguns anos a carne bovina já possa ser introduzida tranqüilamente naquele país. De que teria adiantado lutar frontalmente contra uma cultura milenar?

A particularidade a ser anotada, no campo da literatura, é de que não convém a um autor iniciante ou desconhecido apresentar-se com a pretensão de um nome épico ou chamativo demais. O uso da palavra dragão, desacompanhado de um termo prosaico como janela, poderia ter esse efeito – e tanto pior se se adicionasse outro termo com conotações místicas, enigmáticas ou grandiloqüentes. Essa escolha poderia resultar num desastre, pois o que vale para o produto em geral - a maior exposição possível - deve ser conseguido por subterfúgios quando se lida com consumidores de cultura.

Isso ocorre porque esse tipo de consumidor não aceita imposições vazias: deseja que, no momento do consumo, o produto lhe acrescente algo de substancial, que lhe traga visões de mundo para ele consumidor novas, porém calcadas em sabedoria antiga ou profundos estudos e reflexões; o cheiro da poeira, a textura do papel envelhecido, a lista de referências do autor. O produto não pode parecer obra de tardes vazias ou, tanto pior, da necessidade do escritor de receber por seu trabalho, de sobreviver. A arte não é um trabalho. O verdadeiro artista o é por convicção, e o consumidor cultural não desperdiçará seu tempo com um produto criado para consumo. Não; ele deseja exercer sua liberdade e escolher dentre os vários autores, os quais não podem de forma alguma aparentar mirá-lo como a um consumidor. O consumidor cultural odeia sentir-se como gado, e não deve ser manejado dessa forma.

Ao contrário de estar em contradição com a tese geral apresentada, contudo, essa característica do produto cultural meramente a confirma: a questão é que assim como os indianos são milenarmente avessos à carne bovina (por razões ancestrais, hoje incorporadas a um sistema religioso já com dificuldades de adaptação à modernidade), o consumidor cultural rejeita ainda a artificialidade na sua forma pura. A bem ver, de certa forma o consumidor cultural é feminino: não quer possuir o produto - quer ser possuído por ele. E, também nesse aspecto, talvez não esteja sozinho.

É preciso abdicar então da carne: dar tintas de erudição e despretensão, transmitir a idéia de que ali há algo de intrigante, mas que não está implorando por atenção, cativando assim a curiosidade sem que nosso vegetariano se sinta invadido pela civilização alienígena. Ambiguamente grandiloqüente e prosaico, me parece que "Dragão na Janela" cumpre exemplarmente todos esses requisitos.

Partiremos daqui, portanto.