31.7.08

Lugares-comuns I

É, talvez o Andy já estivesse jogando bem antes do batismo. É o Micheal quem imagina estar-lhe impondo um sacrifício - como foi requerido dele, não foi?, "That's not me, Kate, that's my family" -, quando na verdade o pequeno Mike está apenas sacrificando a si próprio uma segunda vez.

Lugares-comuns II

"No entanto, talvez um dia o século seja Deleuziano."

Lugares-comuns

Acreditar fortemente numa coisa diz muito sobre você, e muito pouco sobre a coisa.

28.7.08

É tarde é tarde é tarde

Sim, entendo vocês, não há tempo. Na verdade, nunca houve. Por isso, precisamos ter muito cuidado com como gastamos os olhos. Por isso, substituo uma digressão sobre os pedaços de cada um e a atividade de tradução por algo que me apareceu em outro continente, sem maior razão de ser. Apenas estando.

***

Como Chateaubriand

Um quadro de Degas. Cortinas

e um pouco de sol. Os relógios

esparsos pelo chão ensinavam

sobre dias da semana. Lembrávamos

de pequenas batalhas por espaços imaculados no teu corpo, e ainda

e ainda estávamos vivos. Já todas as apostas

haviam se encerrado, e nem tínhamos

pensado numa boa canção. Apenas cantávamos.


Um quadro de Degas, ou outra coisa

ainda menor. Um espaço na calçada

e dedos que escorregam. Aquela foto

da Simone, eu pensava. Aqui parece Paris.

Podia ser qualquer lugar.


Um quadro apenas, ou então a cômoda,

o espelho espalhado em triângulos,

tanto tempo extraído do armário.

Uma ilha para pés descalços

e costas de bailarina.

23.7.08

Como resposta

(i) É preciso levar em conta que andei os últimos dias com uma dor que, descobri hoje, era uma cárie, dor que providencialmente decidiu se manifestar apenas ao cruzar o trópico de capricórnio. Por conta disso, estive com o pensamento um tanto embaralhado. O que não é necessariamente ruim, apenas significa: eu não controlo a ordem em que me chegam as cartas.

(ii) Sobre o sacrifício, não é - no caso - uma questão de crença, é uma questão de observação. Ou eu passo a impressão de que escrevo pra mim mesmo?

(iii) O ponto (ii) não diz o que quer dizer. Tentarei explicar, claudicando como de costume, numa próxima.

(iv) Aparentemente, sou tão fácil de anestesiar como um cavalo. Isso não quer dizer nada de bom, só que o tratamento será mais longo e doloroso, sem dar melhores resultados. E contudo há um certo orgulho nisso, não há? Precisarei remexer nesse assunto também.

22.7.08

A impossibilidade de prosseguir

Essa história de começar, começar e começar de novo me lembra sempre um trecho importante do nosso escasso repertório comum. Porque sempre é certo o aonde chegaremos, o problema todo é sair da etapa (I), não é? Assim:
"e recitei os dous versos, cada um a seu modo, um languidamente:
Oh! Flor do céu! Oh! Flor cândida e pura!
e o outro com grande brio:
Perde-se a vida, ganha-se a batalha!
A sensação que tive é que ia sair um soneto perfeito. Começar bem e acabar bem não era pouco. Para me dar um banho de inspiração, evoquei alguns sonetos célebres, e notei que os mais deles eram facílimos; os versos saíam uns dos outros, com a idéia em si, tão naturalmente, que se não acabava de crer se ela é que os fizera, se eles é que a suscitavam. Então tornava ao meu soneto, e novamente repetia o primeiro verso e esperava o segundo; o segundo não vinha, nem terceiro, nem quarto; não vinha nenhum.
(...)
Trabalhei em vão, busquei, catei, esperei, não vieram os versos. Pelo tempo adiante escrevi algumas páginas em prosa, e agora estou compondo esta narração, não achando maior dificuldade que escrever, bem ou mal. Pois, senhores, nada me consola daquele soneto que não fiz. Mas, como eu creio que os sonetos existem feitos, como as odes e os dramas, e as demais obras de arte, por uma razão de ordem metafísica, dou esses dous versos ao primeiro desocupado que os quiser. Ao domingo, ou se estiver chovendo, ou na roça, em qualquer ocasião de lazer, pode tentar ver se o soneto sai. Tudo é dar-lhe uma idéia e encher o centro que falta."
(Em vez de me desviar para uma inútil diatribe sobre os sites (no plural) que convidam o leitor a completar o poema, tento ignorá-los para continuar no plano inicial.)
O jogo todo é: temos o início aqui, conosco, e sabemos intuitivamente sobre o grandioso final, embora ele possa ser grandioso de mais de uma forma. "Tudo é dar-lhe uma idéia e encher o centro que falta." Contudo, e aqui está a chave, somos permanentemente tomados pela impressão de que uma das regras do jogo é que não estamos autorizados a jogar. Basta aguardar e seguir as instruções, todo o sacrifício já foi feito.
E não estou adicionando esse elemento: o problema está identificado no texto, e é a premissa, como provam os sites que nos convidam a completar o soneto. A premissa de que os versos podem sair uns dos outros, naturalmente; de que os sonetos existem feitos como as odes e os dramas, e as demais obras de arte, por uma razão de ordem metafísica.
Pois é aí, Daud, que entram os Corleone. Pois os momentos de transcendência são justamente os momentos de superação, superação que significa: Mary precisa morrer. O que não é o problema, apenas o preço a pagar. A decisão precede o sacrifício, apesar de o compreender. Sinto necessário repetir o diálogo:
Priest: "Michael Francis Rizzi do you renounce Satan?"
Michael Corleone : "I do renounce him."
Priest: "And all his works?"
Michael: "I do renounce them."
Priest: "And all his pomps?"
Michael: "I do renounce."
O problema todo é que os versos não sairão uns dos outros. E não será possível sair do (I) e completar o soneto sem romper com essa premissa. Não basta aguardar e contar com os princípios da metafísica. Para prosseguir, precisaremos aceitar o batizado.

20.7.08

Um certo passado pop - (I)

ou: Bem-vindo de volta, guardamos seu lugar!

"I do not know what, precisely, Laura said [to Liz], but she would have revealed at least two, maybe even all four, of the following pieces of information:

1) That I slept with somebody else while she was pregnant.

2) That my affair contributed directly to her terminating the pregnancy.

3) That, after her abortion, I borrowed a large sum of money from her and have not yet repaid any of it.

4) That, shortly before she left, I told her I was unhappy in the relationship, and I was kind of sort of maybe looking out for someone else.

Did I do and say these things? Yes, I did. Are there any mitigating circumstances? Not really, unless any circumstances (in other words, context) can be regarded as mitigating. And before you judge, although you have probably already done so, go away and write down the worst four things that you have done to your partner, even if - especially if - your partner doesn't know about them. Don't dress these things up, or try to explain them; just write them down, in a list, in the plainest language possible. Finished? OK, so who's the arsehole now?"

19.7.08

Descontextualizações - (I)

"Pero, puesto caso que corran igualmente las hermosuras, no por eso han de correr igualmente los deseos, que no todas hermosuras enamoran: que algunas alegran la vista y no rinden la voluntad; que si todas las belezas enamorasen y rindiesen, sería un andar las voluntades confusas y descaminadas, sin saber en cuál habían de parar, porque, siendo infinitos los sujetos hermosos, infinitos habían de ser los deseos."

18.7.08

A escolha das palavras - (I)

"Camilo não acreditava em nada. Por quê? Não poderia dizê-lo, não possuía um só argumento: limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque negar é ainda afirmar, e ele não formulava a incredulidade; diante do mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi andando."

15.7.08

Kafka e a língua tcheca (esboço sobre o erro)

Uma das coisas mais significativas sobre o formato blog é que ele abre um espaço enorme para o erro. Você redige às pressas, dá no máximo uma relida rápida, publica e vai fazer outra coisa. Daí depois, quando se relê (e eu inevitavelmente me releio) se dá conta que escreveu Íris em vez de Ísis, ou que usou uma fórmula bárbara tipo "sociedades que tentam exercer a função que não lhes corresponde na ordem das coisas", que em outra pessoa te faria desconsiderar no mesmo instante todo o resto das mensagens. E sempre dá pra corrigir, mas quase nunca a tempo, o que pra todos os efeitos quer dizer quase nunca.
Daí meu problema: a questão toda é que não sei se o erro deve ser tratado como erro, como engano, coisa que deve ser corrigida para que o mundo volte a girar na perfeita ordem relativista e desenvolvimentista. Pois penso que um dos grandes acquis do século XX foi exatamente a possibilidade de tratar o erro como lapso - como falha, se quisermos ser geógrafos - como aquilo que, não sendo o mais desejável do ponto de vista do ego do emissor, tem a função de revelar aquilo que uma versão final corrigida, aplainada, esterilizada nos dois sentidos, ocultaria; aquilo que, freqüentemente, era o mais importante na história toda.
Outro dia ainda tive uma conversa sobre séculos, e falava sobre os artífices do século XX quando um outro - e ele se chamava, não estou brincando, David Marx, estudante de medicina - me fez a mesma observação que eu mesmo fiz, nove anos atrás: e por que não Einstein?, não seria ele o D'Artagnan dessa história? E recebeu uma resposta ainda menos satisfatória do que eu há nove anos, de que Einstein se encaixaria já plenamente no século XX e por isso seria um desenvolvimento, num campo aliás muito específico, dos progressos alcançados pelos demais.
Ignoremos a questão cronológica, isto é, de saber se 4 ensaiozinhos escritos a partir de 1905 contam como já no século XX ou se devemos encaixá-los como é uso dos tempos no século XIX. O fato é que se esse judeu alemão (não pensem que não fiz eu também a piada de que ele queria aumentar ainda mais a proporção de judeus no grupo) não criou, soube romper com a doce regularidade musical newtoniana, e no lugar popularizar essa mesma visão anti-vitoriana e anti-racionalista dos demais, essa visão mais funda que faz emergir o erro não como um defeito do processo mas como parte essencial do processo, sem a qual não há movimento, não há espaço, não há tempo, não há o processo. A harmonia simplesmente não o é.
E isso é fundamental, em especial para a arte. Porque alguém poderia levantar o braço e bradar: não me apregoem sistemas completos. Mas eu digo que toda arte é totalitária, e todo artista, um totalitarista. E aqueles que passam a vida tentando provar a impossibilidade de reduzir qualquer dado da realidade a um único ponto de vista apenas realizam a demonstração disso na sua forma mais crua, isto é, ainda estrebuchando.
Pois essa construção do século XX nos fez perceber essa necessidade do erro, essa, um filósofo poderia dizer, importância ontológica do erro, e integrá-la às nossas visões totalitárias. E que terminássemos então com um sistema em que, para acrescentar mais nomes à salada, a desgraça é darwinianamente - ou, se quiserem schumpeterianamente - fonte de evolução, progresso e desenvolvimento sustentável. E arrisco que dentre as coisas mais belas que foram feitas nesse século, muitas devem tudo ou quase tudo a essa estúpida constatação, a essa opinião, a essa impressão, a esse engano, que seja.
O problema é que eles não tardaram a nos caçar, nós que venerávamos o animal errado, que observávamos abismos, que saltávamos de lugares altos apenas para testar a falha em nós mesmos. Porque eles perceberam o que estávamos fazendo, e vieram à carga. E nos neutralizaram - provavelmente, apenas nos ensinando sobre a Curva de Gauss e sorrindo na saída.
E substituíram a importância ontológica do erro pela sua importância estatística. E tornaram nossos deuses subitamente desprezíveis. E ainda não sabemos como sair dessa. Só não queremos esperar outro século.

11.7.08

[geraldo diz] Não, não é que eu esteja realmente blasé, ou melhor, pode até ser mas é involuntário. Tento, de verdade, ser simpático - eu sempre não fui assim? - mas é que às vezes isso é difícil. As pessoas estão ávidas por novidades, porém querem saber novidades do outro lado do mundo, enquanto pra mim as únicas novidades que há estão aqui, na capacidade de empregar um olhar estrangeiro, não anestesiado por anos de caminhadas por esse cenário.
(É talvez que uma amiga me repassou uma frase: "Ninguém passa tanto tempo fora impunemente." E isso me doeu, porque gosto dela, e essa é exatamente uma dessas frases com que a pessoa pensa estar rompendo a teia, quando na verdade está só ajudando a tecê-la mais firmemente, e isso precisamente por passar a impressão de que se está mais próximo da saída. Pois se há um cisma nessa história toda - não desses cismas de coluna social, de quem pegou quem e quem fez qual barraco -, se há um cisma ele existe entre os que julgam que não se pode fugir do labirinto, deve-se habitá-lo, e os que pensam que a única forma de escapar é não procurar a saída, mas destruir as paredes uma a uma. Contudo essa frase, essa frasezinha, ah, ela está gravada no interior do pingente das pessoas que não participam do cisma, mas estão tentando fazer uma corrente humana na esperança de que necessariamente todos agindo juntos encontrarão uma saída, e esses são os razoáveis com quem os participantes do cisma nem se dignam mais a discutir.
Da minha parte, ambiciono uma trapaça de segundo grau: capturar com o espelho as investidas contra os muros de uns e o desconforto dos que permanecem em posição de lótus. Mas nunca achei possível elidir a escolha, e esse é todo o problema dessa posição narrativa. Além do fato de o espelho estar tendo problemas para registrar algo além do que está acontecendo naquele exato instante. Daí que talvez seja preciso outra tecnologia.)
[______ diz] Pois acho que é você que está anestesiado.

10.7.08

[geraldo diz]

Oi,

Estou quase, embora não plenamente. Isso acho que nunca estaremos. A partir de segunda devo poder ser parte do mundo. Mas por um tempo que me parece pouco, apesar de 12h já terem um pouco me acordado para o deserto do real (porém, como disse, não plenamente, como quando o sonho é tão inaceitável que você se diz que é preciso tentar acordar, e sente inclusive a impotência nos pulsos, mas não consegue contraí-los nem mandar embora os fantasmas).

Sinto que há novidades, mas não as compreendo. Li teu diálogo com o Daud. Bonito, não tinha pensado no exemplo do novo shopping. Talvez porque o impensável permaneça mesmo impossível.

Acho que vou postar isto.

Beijo

7.7.08

O flamenco e o tango

Eu ia começar com uma citação. Não se desesperem contudo, não era nada que fosse necessário saber ou que fosse fazer bonito na Vila Madalena – inclusive lá no alto, onde ainda nos cremos seguros liderados por um prosador pop, mal sabemos. Era uma citação da Glória Kalil ou da Danuza Leão, ou de qualquer outra dessas pessoas que se lêem na casa dos outros. Ia como assim: "Mulheres mais jovens devem evitar acessórios em dourado, batom e maquiagem em tons fortes, que podem ser usados por mulheres mais maduras. Nas meninas, deve sobressair a beleza; nas mais velhas, a elegência."


Mas lógico que procurando "beleza" e "elegância" juntos no google, encontro milhares e milhares de artigos com as duas palavras associadas, e nunca em relação de oposição. É preciso uma sensibilidade de mulher de meia-idade para separar coisas que o turbilhão das delícias quer nos fazer engolir numa só colher. E isso mesmo levando em conta a generalização generosa feita pela colunista, no caso, porque há algo de verdade muito forte no que ela diz.


E é claro que transpor essa relação para as sociedades é uma aventura muito perigosa, porque é incorrer num erro do século dezenove. Posso dizer contudo que, dadas as condições atuais, é preferível estar errado com o século dezenove do que estar certo com o século vinte - assim como se deve ponderar bem a irrazoabilidade do século vinte antes de mergulhar no razoável século vinte e um. Aulas de contabilidade nunca foram para nós.


Porém a proposta é simples, e pode ajudar a responder a questão que ficou pendente, como sempre com uma frase pretensamente reveladora cuja função é menos definir do que passar adiante a dúvida : a Europa seduz pela acumulação; a América, pela nudez.


Em lugar da dançarina de flamenco e do casal de tango, eu poderia colocar o can-can contra a globeleza, as saias, vestidos, faixas e casacos contra a barriguinha de fora, o blazer contra o supino. Pra não entrar em arquitetura, tesouros nacionais etc. O que se vende de um país diz muito sobre o que ele é, embora não seja a mesma coisa que o que ele é. Ah, isso de jeito nenhum.


Daí as pessoas poderiam me lembrar da existência de Campos do Jordão, dos edifícios neoclássicos da Berrini ou da moda da superposição de roupas para me dizer que não é exatamente verdade. Deste lado, há no verão a Paris plage, com areia na borda do Sena, e na frente da prefeitura tem agora um 'bosque transitório' ou coisa assim: sobre o pavé, as árvores. Mas o resultado triste das sociedades que tentam exercer a função que não lhes corresponde na ordem das coisas equivale com precisão ao desastre da menina de doze anos dentro de uma meia arrastão e manchada de batom vermelho, ou ao das senhoras de biquini em Copacabana, quarentonas com os cabelos na cintura e etc. Lembram o que aconteceu quando povoaram de plátanos o Rio de Janeiro?


Acho que é isso o que eu quis dizer quando falei no estilo americano de um blog, contraposto ao estilo europeu. Sintomaticamente, vou ficando cada vez mais americano, isto é, mais nu e menos salpicado de acessórios para dar uma certa aura de antigüidade, como quem desiste de discutir o conceito de Aufhebung e pensa mais nas coisas que aconteceram na madrugada em que o metrô não fechou – e daí para pensar que é precisamente nesses interstícios em que as coisas não funcionam como estamos acostumados, quer dizer, como deveriam, que a natureza exata delas é revelada.


Sempre guardei esta citação para um texto maior e mais importante, mas como pode ser que ele nunca venha, solto aqui. Onde dessas duas regiões do mundo alguém poderia recitar assim:


« But you made me feel

yeah you made me feel

shiny and new »


***


P.S.: Acabo de ver a segunda mulher de barriga de fora em dois dias. É verão em Paris. Adivinhem que língua as duas falavam: