Pois é que hoje de manhã acordei e finalmente notei que estou recuperado das duas semanas sem dormir, das 178 páginas de reflexão sobre sanções internacionais que abandonei sem esgotar o assunto por falta de tempo e da tensão de não ter ido tão longe quanto gostaria. E lembrei também do Caçador que espreita espalhado em folhas A4 nestes 12,60m² de lucidez e em etéreas mensagens de e-mail de mim pra mim mesmo, que se morro ninguém nunca saberá a senha (exceto por meus pais, que terão sem dúvida o bom-senso de apagar tudo, há um motivo pelo qual coisas ficam sem ser publicadas e não é porque o autor queria esconder o que de melhor ele tinha).
Mas, mais importante, lembrei da minha conta bancária que está pra emitir o seu último suspiro de dinheiro ganho sentado entre cristal líquido, carpete, cafezinhos grátis e árvores desmembradas, caindo a cada segundo e se transformando em share pledge agreements, em convocações de assembléia geral extraordinária, em termos de quitação, poemas e quem sabe se bilhetinhos de amor. E verifiquei os últimos desastres excitantes sobre o Lehman Brothers e o Northern Rock e mais tantos outros nomes que se dá à rede de árvores desmembradas guardadas em arquivos cem ou duzentas vezes mais espaçosos que o lugar que habito, sufocadas no terceiro subsolo de algum prédio, protegidas pelo solo rochoso de Manhattan, por barras de ferro e trancas inacessíveis para mãos humanas, outorgando plenos poderes a rapazes com ternos de dois botões, gravatas de 7cm de espessura, sapatos de bico fino e pomada no cabelo para comprar e vender ienes de fevereiro de 2009, safras agrícolas da Geórgia em 2014 e tufões destruidores das casas dos cubanos em 2023, quando há muito a estátua de Fidel terá sido levada para o Metropolitan.
Pensei nas minhas opções, em como falar com o proprietário do apartamento sobre a saída definitiva, nos dias que seria necessário para realizar algumas transações e nos pulsos telefônicos que resolveriam todos os problemas, e tomei a única atitude razoável nas circunstâncias. Removi do meu curriculum vitae - do curso da minha vida, diria um latinista - três anos sentado redigindo contratos internacionais, seis meses atuando junto ao Poder Judiciário do Estado de São Paulo, 250 páginas de teoria jurídica, cargos políticos estudantis, um prêmio universitário internacional e dois artigos publicados. Em vez, coloquei experiências de verão em bares e restaurantes que chamei Casa da Cachaça e Copacabana Sucos. Imprimi dez cópias no mesmo lugar onde há uma semana imprimi mais de 1200 páginas e onde há um ano xerocopio reflexões de renomados teóricos de tantas áreas espalhados pelo mundo, para colori-las em verde, amarelo e laranja. Montei numa bicicleta às 21h00 de Paris numa quarta-feira e fiz a ronda dos bares da cidade onde tantas vezes já estive como consumidor, repetindo como uma antiga fórmula o mantra: "
Bonsoir, est-ce que vous auriez par hasard besoin de quelqu'un pour travailler dans le bar?, comme serveur ou comme barman?", e daí começando diálogos mais ou menos frutíferos que podiam terminar numa recusa expressa, numa confissão de que ali trabalha apenas a família do patrão, na informação de que o patrão só contrata meninas ou num aperto de mão e promessa de ligação no dia seguinte.
E caminhava pela rua pensando na música que diz que as pessoas elas não entendem, as namoradas elas não entendem, nas espaçonaves eles não vão entender e eu então nunca vou entender, e naquele trecho fantástico do On The Road em que ele fala assim:
"We bent down and began picking cotton. It was beautiful. Across the field were the tents, and beyond them the brown cottonfields that stretched out of sight to the brown arroyo foothills and then the snow-capped Sierras in the morning air. This was so much better than washing dishes South Main Street. But I knew nothing about picking cotton. I spent too much time disengaging the whiteball from crackly bed; the others did it in one flick. Moreover, fingertips began to bleed; I needed gloves, or more experience. There was an old Negro couple in the field with us. They picked cotton with the same God-blessed patience the grandfathers had practiced in ante-bellum Alabama; they moved right along their rows, bent and blue, and their bag increased. My back began to ache. But it was beautiful kneeling and hiding in that earth. If I felt like resting I did, my face on the pillow of brown moist earth. Birds an accompaniment. I thought I had found my life’s work.
(...)
Every day I earned approximately a dollar and a half. It was just enough to buy groceries in the evening on the bicycle. The days rolled by. I forgot all about the East and all about Dean and Carlo and the bloody road. Johnny and I played all the time; he liked me to throw him up in the air and down in the bed. Terry sat mending clothes. I was a man of the earth, precisely as I had dreamed I would be, in Paterson. There was talk that Terry’s husband was back in Sabinal and out for me; I was ready for him. One night the Okies went mad in the roadhouse and tied a man to a tree and beat him to a pulp with sticks. I was asleep at the time and only heard about it. From then on I carried a big stick with me in the tent in case they got the idea we Mexicans were fouling up their trailer camp. They thought I was a Mexican, of course; and in a way I am."
E era apenas isso, não há ninguém para entender e eles pensarão que eu sou um mexicano, e de certa forma eu sou é claro. Mas de outra forma não, não é mesmo? Pois acima dos lagos, acima dos vales, das montanhas, dos bosques, das nuvens, dos mares, há um futuro onde a máquina do mundo se abre majestosa e circunspecta, chamando-me para seu reino augusto afinal sumetido à vista humana, e nesse futuro não serei um mexicano nem um marroquino nem um maliano. Por isso é tão importante dizer que sim, que trabalho em período integral se necessário e até mais, que não preciso de papéis nem nada e que posso ficar inclusive até mais tarde. E tenho sorte, pois meu grande trunfo são exames que fiz para pedir entrada em paraísos educacionais que custam o dobro do que ganharei.
Então, depois de duas horas realizando essa atividade de soltura no mundo, voltei para minha casa que fica na Montanha de Santa Genoveva, entre a cidade, com as suas agitações e aventuras, e o céu, em que as estrelas pestanejam. É preciso tentar, ao menos uma vez, enviar cartas a esmo e verificar se há efetivamente alguém do outro lado, em vez de apenas bater a senha que vem sendo transmitida há gerações. É preciso não saber a senha e dizê-la mesmo assim, ainda que nos seja proibido, ao final, entrar no mundo de Alice (
"If you men only knew!") pois nunca havíamos sido convidados.
Se tudo der certo então, poderei em breve expor em quê ser advogado difere de ser garçom. Aguardem.