(uma nota p.s. que vai antes. Acabo de inventar um antigo adágio, que diz que é fácil dizer coisas fáceis; difícil é dizer as difíceis. Ocorreu-me porque o que segue é uma tentativa, como vêm sendo as tentativas, de largar as estrelas, os dedinhos viscosos que brotam de antigas histórias e uma pulsão de alaranjados sobre laranja que não dizem nada, e buscar algo bem mais próximo ao chão - mas apenas como alguém que estivesse andando pela rua com seu iPhone e seus livros da Cosac Naify e fosse subitamente golpeado por um andaime.)
Tive uma revelação muito importante num desses dias. É que esteve em casa um amigo involuntário, que provavelmente prefere ser mantido no anonimato, e como com freqüência acontece descambamos para a literatura. E aí, como quase sempre acontece, tem aquele momento desagradável em que você fala que escreve umas coisas aí e a pessoa fica em dúvida se pede ou não pra ler, pra ouvir - e, é importante, estávamos talvez na segunda garrafa de vinho já, de forma que ele pediu pra ouvir, o que eu tivesse de melhor.
Li duas ou três coisas e ele pediu autorização pra ser sincero e, antes que eu pudesse decidir se autorizava ou não disse que era uma bosta, que pedia desculpas mas que era uma bosta. E é claro que isso nunca é simples de se ouvir, mesmo quando se tem o tal ego à prova de balas que passamos 5 anos desenvolvendo. Porque tenho pra mim a ilusão de que é preciso que as pessoas gostem pra que eu finalmente tenha a coragem de chegar em 2011 e publicar o Caçador. E embora a peer review que eu tenho seja até razoável, quando alguém que leu bastante na vida vem e diz que acha uma bosta você é obrigado a pensar no assunto e se vale a pena gastar tempo e dinheiro com isso quando pode, sei lá, trabalhar pra comprar uma casa na represa.
O que conecto - e isso, desculpem agora vocês, não faz o menor sentido por enquanto - com uma conversa que tive uma vez com o
Alan e que não me sai da cabeça e em que ele disse: a questão é que o Brasil tem um futuro, vocês têm essa perspectiva do Brasil-potência, e a Guatemala não tem nada. É isso, quer dizer, temos algo a perder, e um futuro de locomotiva que fica evidente quando se tem informação por outros veículos que não a imprensa paulista. E o Alan agora está morando em São Paulo, onde a Linha 4 ficará pronta para a Copa de 2014, e talvez até o trem-bala.
Mas o mais significativo sobre esse Brasil-potência que o Alan identificou pouco antes de conhecer o Capão Redondo é que a potência não faz a menor idéia do que deseja. Quer dizer, os europeus levam muito a sério sua tarefa civilizatória e a maior ambição da alemã que conheci ontem é civilizar a França. Os americanos estão lá com seus helicópteros iluministas difundindo os valores dos pais fundadores, enquanto russos e chineses pensam: é preciso retomar nosso império, temos apenas que segurar as paredes tempo o suficiente para que a casa de máquinas se abra e nossos rapazes tomem conta dela como já fizeram tantas outras vezes. Desconfio que até os indianos têm um plano maravilhoso sobre o que fazer com o mundo quando ficar demonstrada a inviabilidade da sociedade laica.
O Brasil, porém, não faz a mínima idéia do que deseja fazer com todos os seus quilômetros quadrados, toda a sua porcentagem de água e inclusive com sua democracia racial incompleta. E "incompleta" é uma palavra que ocupa exatamente a fenda que eu estava procurando, na verdade, porque certamente nenhum brasileiro recomendaria a outro país que adote qualquer coisa semelhante ao que criamos. E o "criamos" aqui parece deslocado, na verdade, tendo em vista que não temos a menor sensação de ter criado nada, ou mesmo de sermos capazes de escolher uma alternativa e seguir pela estrada que ela abre. Um professor uma vez fez uma observação precisa, sobre um assunto outro: quando chega no Brasil, já é teoria mista.
Me aproprio então do discurso do Pasta, que transformou uma vez o Brás Cubas fantasma numa espécie de alegoria do Brasil - opinião sobre a qual Brás Cubas escreveria bem uns dois capítulos -, pra perguntar em seguida se a essência da sociedade brasileira não é exatamente de ser essa que, como o defunto autor, avança, mas não supera. Ou seja, é como se fosse uma sociedade que nunca se forma, como um universitário que nunca se forma, e continua sempre com umas matérias por fazer, e isso apesar de galgar postos mais e mais avançados. Só completa o ciclo sob forças externas.
Não levem a sério isso que vai acima, evidentemente: não é o momento de um discurso sobre a reforma agrária ou a questão racial ou o direito do consumidor avançadíssimo, muito mais que na França e talvez qualquer país do continente. Não é um discurso sobre eleições e sexualidade, também, pois esse tipo de novidade há coisa de quinze anos não é novidade. Esta bagunça, afinal de contas, deve ter um centro discernível, que é a literatura, ou ao menos foi o fardo que alguém - o snoop? - colocou nesse subtítulo no qual eu nunca me dei ao trabalho de mexer, e que aliás as circunstâncias cuidaram de tornar ainda mais apropriado do que ele já era quando da confecção do presente.
E a pergunta é se têm algum valor nossas buscas pela abolição dos índios na literatura brasileira, como pediu o Vicente. Ou nossas tentativas de voltarmos a ser bregas, quando todo o problema é que nunca fomos bregas, apenas quando entramos na sala alguém nos disse que era possível que houvéssemos sido. Como abolir o espaço ou a forma que nunca estiveram sob nosso controle? O problema da revolta não é, como gostaríamos, a falta de armas, mas a absoluta elasticidade dos muros, prontos a se transformar em poltronas assim que desejarmos descansar um pouco. Acho cada vez mais difícil não concordar com o ridículo das tentativas de arrebentar com a porta que se abrirá automaticamente assim que nos aproximarmos dela a 200 km por hora, quando então nos encontraremos em meio ao salão e nos perguntarão se desejamos vinho ou champanhe. Ou, alternativamente, seremos congratulados por aquela voz abafada que diz: obrigado, volte sempre!
Colocado de forma mais crua: no nuevo século latinoamericano, nesse Brasil do sebastianismo invertido que simplesmente não chegará, nada está determinado, nenhuma escolha foi feita, mas todas as portas parecem assustadoramente abertas e todos os bilhetes já foram reservados e os lugares escolhidos. À medida em que ultrapassamos as comportas, vamos concluindo que não trouxemos nada do material com que pensávamos avaliar o que há para além dessas comportas. Nos limitaremos a observar deslumbrados, e adaptar os nomes quando voltarmos para contar como foi.
Não tenho como justificar isso. Mas, diante da perspectiva de um retorno duplo, talvez triplo, de uma missão em que descobri, para além das comportas que nunca me prenderam, o grande vazio de Kaspar Hauser, começo a acreditar que talvez ainda caiba à literatura a suja tarefa do romantismo.