26.12.08

Poema de Natal

Velhinho de um ano, e talvez até que bonitinho à sua própria maneira.

***

Fadinha de Natal


Menos de um minuto, dizia Papai Noel
- e fazia relógio com os braços.
Pro cliente dava na mesma: era caber na caixa e mostrar a nota.
O prazo era dela.
Cada pacote, vinte centavos.
Passou de um minuto, nada.

A supervisora fazia que não via
só umas crianças é que exigiam o registro
dedinhos curiosos no botão.
Papai Noel ria, dançava e cantava
o minuto escorrendo pela testa manchando a maquiagem
o gorro firme preso com grampo.

Tinha cliente que trazia extra
esquecia a nota, sorria e pedia. Era Natal
e sempre sobravam umas outras notas, pegavam com amigas nas lojas, davam um jeito.
Desses vinham também as melhores gorjetas
que não podia mas todas dividiam.
(a Ana Paula, bonita,
sempre ganhava mais)
Viravam sorvete, cinema e besteirinhas.

No fim, um pouco pra mãe
umas roupas pro namorado
brinquedos pros sobrinhos.
Pra ela mesma, fez escondido uma vontade boba:
gastou tudo na boneca da vitrine em frente.

3.11.08

Superação

Minha idéia de superação vem de observações simples. Como quando não havia astrolábios mas o sujeito ia lá, olhava o poço da vila, subia num camelo e calculava o tamanho da terra. Errado, do ponto de vista de quem precisa lançar um míssil nuclear sobre um país e não sobre o país vizinho, mas não é esse o ponto. Por isso previno: não liguem para o título, é uma provocação.

Uma coisa que se observa facilmente é o quanto repudia a uma criança de doze anos tudo aquilo que lhe parece próprio a uma de dez. Ela está inclusive pronta a humilhar os colegas menores que têm práticas exatamente iguais às dela própria pouco tempo antes. Porém a mesma relação não se observa em relação a crianças tão menores que o maior não se sinta secretamente atraído por aquilo, ou seja, contaminável. Daí que, quando ele tiver quinze, repudiará o que le parece próprio dos de doze e assim por diante, até que se torne indiferente em relação a tudo o que é infantil - como coisa que existe e tem seu lugar, mas não mais lhe pertence nem lhe ameaça.

É claro que essa observação tem pouco a ver com crianças. É inclusive mais fácil de notar em coisas como o gosto musical de adultos, por exemplo: o que se descreve como odiando determinado movimento apenas revela um certo medo de ser associado a ele. Provavelmente, se você perguntar para o Hobsbawn ou o Medaglia que música, dentre umas quatro ou cinco escolhas bem-postas, lhes parece melhor ou pior, farão uma escolha que pode dar preferência ao que é menos incômodo aos ouvidos, ou então tentar ser compreensivos e fazer uma escolha de cultural studies - privilegiando o que vem de cenários exóticos como a periferia das grandes cidades latinoamericanas ou o meio rural brasileiro. Mas se manifestarão sem grande emoção, buscando compreender (e vejam a lonjura até onde alcança esse verbo) as várias manifestações que estão subentendidas e talvez até limpar o terreno com uma vassoura num esforço para encontrar algo que brilhe.

Poderia falar também de uma concepção que tenho aqui sobre o vegetarianismo contemporâneo - nada a ver, evidentemente, com os indianos que desejam purificar o corpo. É de uma certa forma apenas a conseqüência imediata de uma geração que nunca viu a avó degolar galinhas no quintal, que nunca viu abater uma vaca e que descobre horrorizada, aos doze anos, que o pacotinho com sanguinho no supermercado já foi um bichinho! E não consegue encarar aquilo como parte do mundo, mas como algo que fizemos no passado e que, se ainda fazemos, não é por nossos estômagos e sim por estarmos atrasados. Depois há todo o discurso sobre os dez por cento de energia, mas na base é apenas o horror do ciclo da vida, que aparece em vídeos do youtube para uma geração que nunca viu uma cobra matar um sapo.

Não preciso extravasar e falar da luta sem trégua que se trava no Brasil entre os inimigos da ditadura militar e os inimigos da União Soviética - duas coisas que, como lembra com freqüência o Urso, já terminaram. Obviamente, nenhum dos contendores está disposto a reconhecer estar sozinho no ringue errado, e faz grandes esforços para demonstrar cientificamente que estrebuchamentos são sinais de vida afinal de contas. Não, é possível ser mais rasteiro.

Na frente do Parlamento inglês, por exemplo, há uma estátua do Cromwell. Da qual ninguém dirá, como fazia meu Lonely Planet com as estátuas de Lênin, que é uma relíquia mórbida e que deve ser removida. Na França, por outro lado, não se encontram estátuas de Robespierre, por exemplo, enquanto todas as igrejas depredadas durante a revolução estão sofrendo grandes trabalhos para se parecerem com aquilo que gostaríamos de ter como fundo em nossas fotografias de viagem. O que diz muito sobre estarmos no país de Debord, afinal de contas.

No Brasil, não consigo pensar num só lugar onde encontrar estátuas das figuras mais interessantes de nossa história - o que quer dizer, no mínimo, que estão envergonhadamente longe da Paulista, da Sé, do Planalto e do Arpoador. Temos medo de todos, como crianças que ainda não superaram: de Antônio Conselheiro, de Domingos Jorge Velho, de Lampião, de Zumbi, provavelmente em São Paulo mesmo de Getúlio Vargas. Somos capazes de pagar para que as pessoas perdoem, mas não de levantar um monumento decente a Marighella, mais que uma pedra no caminho. Há, é claro, aquela estátua (feia, enfim, não é essa a questão) do Borba Gato no fim da Nove de Julho. E temos o Deixa-que-eu-empurro, que homenageia assim coletivamente os fundadores da cidade, sem muito escolher lado e sem botar a cara de sujeito nenhum pra bater. E, se escolher, já vem a turma do Terra em Transe: - Extremista, extremista! Talvez os gaúchos sejam os únicos capazes de ter/deixar seus heróis em paz, o que diz bastante coisa sobre a República dos Pampas. Há até estátua de Garibaldi em Porto Alegre, assim como na Argentina, na Rússia, por toda a Itália, na Hungria e em Nova Iorque. 

Isso tudo pra dizer que o sinal da superação virá quando conseguirmos falar dessas pessoas todas, não como quem escreve estadunidense acreditando fazer seu voto de protesto, mas como quem entende, ao olhar brincar uma criança de dez anos, que não há ameaça de retorno, e compreende aquilo como algo que também está em nós, que nos forma e - mesmo como erro - constitui.

E, antes da pedreira destes outros todos, talvez haja uma figura bem menos difícil que precise ser melhor assimilada (outro verbo que escorrega perfeitamente de um lado a outro), porque - e isso é muito importante - nem isso fomos capazes de superar no Brasil. Trata-se do indivíduo que, fundado no mais puro acaso, por mais tempo governou o país, e que fez grande parte das escolhas (e não-escolhas) que determinaram o que somos hoje. Trata-se do nosso último imperador. É preciso reconhecê-lo e, talvez mais importante, revisitá-lo.

29.10.08

O que é difícil

(uma nota p.s. que vai antes. Acabo de inventar um antigo adágio, que diz que é fácil dizer coisas fáceis; difícil é dizer as difíceis. Ocorreu-me porque o que segue é uma tentativa, como vêm sendo as tentativas, de largar as estrelas, os dedinhos viscosos que brotam de antigas histórias e uma pulsão de alaranjados sobre laranja que não dizem nada, e buscar algo bem mais próximo ao chão - mas apenas como alguém que estivesse andando pela rua com seu iPhone e seus livros da Cosac Naify e fosse subitamente golpeado por um andaime.)

Tive uma revelação muito importante num desses dias. É que esteve em casa um amigo involuntário, que provavelmente prefere ser mantido no anonimato, e como com freqüência acontece descambamos para a literatura. E aí, como quase sempre acontece, tem aquele momento desagradável em que você fala que escreve umas coisas aí e a pessoa fica em dúvida se pede ou não pra ler, pra ouvir - e, é importante, estávamos talvez na segunda garrafa de vinho já, de forma que ele pediu pra ouvir, o que eu tivesse de melhor.

Li duas ou três coisas e ele pediu autorização pra ser sincero e, antes que eu pudesse decidir se autorizava ou não disse que era uma bosta, que pedia desculpas mas que era uma bosta. E é claro que isso nunca é simples de se ouvir, mesmo quando se tem o tal ego à prova de balas que passamos 5 anos desenvolvendo. Porque tenho pra mim a ilusão de que é preciso que as pessoas gostem pra que eu finalmente tenha a coragem de chegar em 2011 e publicar o Caçador. E embora a peer review que eu tenho seja até razoável, quando alguém que leu bastante na vida vem e diz que acha uma bosta você é obrigado a pensar no assunto e se vale a pena gastar tempo e dinheiro com isso quando pode, sei lá, trabalhar pra comprar uma casa na represa.

O que conecto - e isso, desculpem agora vocês, não faz o menor sentido por enquanto - com uma conversa que tive uma vez com o Alan e que não me sai da cabeça e em que ele disse: a questão é que o Brasil tem um futuro, vocês têm essa perspectiva do Brasil-potência, e a Guatemala não tem nada. É isso, quer dizer, temos algo a perder, e um futuro de locomotiva que fica evidente quando se tem informação por outros veículos que não a imprensa paulista. E o Alan agora está morando em São Paulo, onde a Linha 4 ficará pronta para a Copa de 2014, e talvez até o trem-bala.

Mas o mais significativo sobre esse Brasil-potência que o Alan identificou pouco antes de conhecer o Capão Redondo é que a potência não faz a menor idéia do que deseja. Quer dizer, os europeus levam muito a sério sua tarefa civilizatória e a maior ambição da alemã que conheci ontem é civilizar a França. Os americanos estão lá com seus helicópteros iluministas difundindo os valores dos pais fundadores, enquanto russos e chineses pensam: é preciso retomar nosso império, temos apenas que segurar as paredes tempo o suficiente para que a casa de máquinas se abra e nossos rapazes tomem conta dela como já fizeram tantas outras vezes. Desconfio que até os indianos têm um plano maravilhoso sobre o que fazer com o mundo quando ficar demonstrada a inviabilidade da sociedade laica.

O Brasil, porém, não faz a mínima idéia do que deseja fazer com todos os seus quilômetros quadrados, toda a sua porcentagem de água e inclusive com sua democracia racial incompleta. E "incompleta" é uma palavra que ocupa exatamente a fenda que eu estava procurando, na verdade, porque certamente nenhum brasileiro recomendaria a outro país que adote qualquer coisa semelhante ao que criamos. E o "criamos" aqui parece deslocado, na verdade, tendo em vista que não temos a menor sensação de ter criado nada, ou mesmo de sermos capazes de escolher uma alternativa e seguir pela estrada que ela abre. Um professor uma vez fez uma observação precisa, sobre um assunto outro: quando chega no Brasil, já é teoria mista.

Me aproprio então do discurso do Pasta, que transformou uma vez o Brás Cubas fantasma numa espécie de alegoria do Brasil - opinião sobre a qual Brás Cubas escreveria bem uns dois capítulos -, pra perguntar em seguida se a essência da sociedade brasileira não é exatamente de ser essa que, como o defunto autor, avança, mas não supera. Ou seja, é como se fosse uma sociedade que nunca se forma, como um universitário que nunca se forma, e continua sempre com umas matérias por fazer, e isso apesar de galgar postos mais e mais avançados. Só completa o ciclo sob forças externas.

Não levem a sério isso que vai acima, evidentemente: não é o momento de um discurso sobre a reforma agrária ou a questão racial ou o direito do consumidor avançadíssimo, muito mais que na França e talvez qualquer país do continente. Não é um discurso sobre eleições e sexualidade, também, pois esse tipo de novidade há coisa de quinze anos não é novidade. Esta bagunça, afinal de contas, deve ter um centro discernível, que é a literatura, ou ao menos foi o fardo que alguém - o snoop? - colocou nesse subtítulo no qual eu nunca me dei ao trabalho de mexer, e que aliás as circunstâncias cuidaram de tornar ainda mais apropriado do que ele já era quando da confecção do presente.

E a pergunta é se têm algum valor nossas buscas pela abolição dos índios na literatura brasileira, como pediu o Vicente. Ou nossas tentativas de voltarmos a ser bregas, quando todo o problema é que nunca fomos bregas, apenas quando entramos na sala alguém nos disse que era possível que houvéssemos sido. Como abolir o espaço ou a forma que nunca estiveram sob nosso controle? O problema da revolta não é, como gostaríamos, a falta de armas, mas a absoluta elasticidade dos muros, prontos a se transformar em poltronas assim que desejarmos descansar um pouco. Acho cada vez mais difícil não concordar com o ridículo das tentativas de arrebentar com a porta que se abrirá automaticamente assim que nos aproximarmos dela a 200 km por hora, quando então nos encontraremos em meio ao salão e nos perguntarão se desejamos vinho ou champanhe. Ou, alternativamente, seremos congratulados por aquela voz abafada que diz: obrigado, volte sempre!

Colocado de forma mais crua: no nuevo século latinoamericano, nesse Brasil do sebastianismo invertido que simplesmente não chegará, nada está determinado, nenhuma escolha foi feita, mas todas as portas parecem assustadoramente abertas e todos os bilhetes já foram reservados e os lugares escolhidos. À medida em que ultrapassamos as comportas, vamos concluindo que não trouxemos nada do material com que pensávamos avaliar o que há para além dessas comportas. Nos limitaremos a observar deslumbrados, e adaptar os nomes quando voltarmos para contar como foi.

Não tenho como justificar isso. Mas, diante da perspectiva de um retorno duplo, talvez triplo, de uma missão em que descobri, para além das comportas que nunca me prenderam, o grande vazio de Kaspar Hauser, começo a acreditar que talvez ainda caiba à literatura a suja tarefa do romantismo.

21.10.08

Do outro lado



18.10.08

Uma proposta

(escrevo de um teclado extranjero, que todavia no fue submetido a minha tropicalizaciòn)

A vezes me sinto mal por no ser propositivo o bastante. Afinal, como sabemos, no es suficiente apontar todas as imperfecciones e todos os sem-sentido e todas as falsidades de um modelo determinado se no formos capazes de apresentar uma alternativa viàvel - normalmente, na opiniòn de alguém que ya decidiu que no hay uma alternativa viàvel.

Vou me concentrar num pequeno problema - na verdade, enorme e extensible a todo o resto do espetàculo - de algumas peças a que assisti: a incapacidade, verdadeiramente transatlàntica, dos atores para interpretar crianças.

Pois no sei se ustedes ja repararam. Se no repararam, parem pra reparar, preferencialmente num ambiente pùblico como uma praça ou um omnibus, e numa criança que no suspeite de estar sendo objeto de um estudo. Es que crianças se comportam ao menos noventa por cento do tempo, e eu diria mesmo cem por cento do tempo, bastante diferente de adultos imitando crianças. Elas no tienem um olhar vago como alguém incapaz de focar ou que temesse ser observado, mas ao contràrio, olham direta e demoradamente para aquilo que lhes interessa e isso mesmo quando isso é um outro ser humano em estado deprimente ou ameaçador: o desviar o olhar é que é o aprendido. Também no tienen um sorriso neutro na face nem ficam arregalando os olhos como quem estivesse imitando um balòn inflado. E principalmente no caminham em saltitos, com as pernas afastadas nem cambaleando de um lado a outro - esquece os joelhos, levanta e anda.

Correndo o risco de passar uma mà impressiòn como a daquele critico inglés que faz a apologia do Bob Dylan enquanto poeta, darei como o exemplo de boa interpretaciòn infantil a dos atores de Chavo del Ocho. Estàn eretos e andam normalmente como crianças sem defeitos andam normalmente, no fazem voz de falsete e nem dàn entonaciones extranhas às suas frases. No necessitam fingir-se menores como crianças do que son como atores, nem hacer cara de idiotas, para que saibamos - todos - que estào ali representadas pessoas pequenas.

O que distingue uns de outros, entào? No teatro, eu diria primeiro o avassalador das emociones quando essas se apresentam: a criança no caminha entristecida, mas se senta e chora. E no pega no ombro mas corre e abraça. Depois e relacionado, um ocupar-se plenamente do brinquedo, do alimento, do jogo, de um ferimento - do presente. Terceiro, o olhar curioso da criança, que no se dirige indistintamente a todo o mundo que a cerca como se estivesse permanentemente entrando num parque de diversiones, mas se concentra sobre pequenas coisas e se fascina com elas como a adultos sòbrios em situaciones sociais é absolutamente proibido.

No posso me deter demais sobre o olhar da criança: olhar tenho o meu, me basta e na verdade quase que no cabe em mim. No saberia transmiti-lo. Mas hay quem saiba, e recomendo pra isso um certo Picasso ya na idade em que se pode sem risco de reprimendas montar num cavalo magro, tomar um làpis na mano e sair a reparar o mundo.

O que vem como no tronco de tudo isso entretanto, e tento trazer em palavras, é o esquecimento: a capacidade da criança de, a cada segundo, no carregar consigo nem um pequeno totem, nenhuma lembrança, nenhum souvenir do que anos atràs a feriu, nem considerar como cada movimento a deixarà mais preparada para o pròximo combate.

Apenas deixar que eles cheguem, e entào fazer o melhor que pudermos.

13.10.08

Sinto falta

Há muitas coisas de que sinto falta, de que manco mesmo. Uma delas são amigos ranzinzas.

Ontem fui assistir a uma peça de teatro. Sofrível. Um texto péssimo (de adaptação da própria trupe, então culpa deles sim) daqueles em que os atores ficam narrando em vez de encenar, atuações entre medianas e risíveis (ok, ajudou o fato de que era um bando de ocidentais tentando se passar por taiwaneses), tentativas extremamente malsucedidas de encaixar canções no enredo e o mortal, pra mim - nem um pouquinho de esprit.

Mas acabou a peça e observei que uma das atrizes tinha sotaque brasileiro. Aí descobri que na verdade tínhamos vindo ver a peça porque a menina era amiga de uma das meninas (segunda vez que caio nessa), e logo havia outras pessoas que notaram que conheciam a menina - pois a comunidade aqui é cerradíssima.

Quando menos vi estávamos dando parabéns esfuziantes e eu estava fazendo comentários sobre a dificuldade do tema, que era necessário embutir muitas explicações históricas sobre as guerras e ocupações que nos são infamiliares - o que é evidentemente mentira, uma guerra é uma guerra, uma ocupação é uma ocupação, e a inserção de momentos explicativos num texto dramático é uma confissão de falha. Falha em transmitir a mensagem pelo meio em que, teoricamente, o grupo sabe o que está fazendo.

Fora da matilha, tive de me contentar com comentários engolidos, passados discretamente pra uma amiga que ao menos não ficaria consternada pela minha falta de solidariedade com o esforço alheio.

Acontece que uma obra de arte não pode ser avaliada pelo esforço do artista. Correndo o risco de se transformar em como aquela temporada do David Copperfield (ou o outro?, aquele negro) num tanque de gelo, que lhe rendeu mais três semanas no hospital. Pode ser um esforço impressionante - mágica, não é.

Vocês me mancam.

10.10.08

Um recomeço

Havia muitas maneiras de recomeçar. Uma defesa apaixonada daqueles que passam a vida trabalhando onze horas por dia, atravessada de considerações sobre a capacidade humana de a tudo se adaptar; uma explicação de certo mau gosto sobre o estado das finanças e como conseguirei finalmente viajar um pouco em novembro, sem gastar a mais que o planejado; uma confissão de fracasso simplesmente, que mal disfarçaria o retorno à confortável situação dos que têm o privilégio - no sentido francês da palavra - de trabalhar sentados.

Porém, como de costume, trapaceio.

***

Al Chavo del Ocho

Como explicar-lhes a alegria surda
de um mundo que permanece?
Onde as pessoas não se mudam,
não casam, e os meninos
são sempre meninos.
A antiga paixão, pouco nos importa
se é correspondida ou desdenhada,
diante da certeza de que amanhã,
ao acordarmos, ela ainda estará lá.

Queremos garantias
de que a moda é em vão,
de que a todos é permitido passar anos
com um único vestido, pobre ou rico,
como se nunca houvesse um evento planejado,
como se cada dia fosse igualmente
alegre ou triste, e cada noite
igualmente iluminada.

Exigimos que os vagabundos possam
permanecer vagabundos, que os
proprietários tenham sempre pena
e que todos os atropelamentos
não passem de imaginação das crianças.
Pedimos a abolição de toda morte
que não seja boato, que todos os que partem,
retornem, e que todas as viagens
sejam feitas, ao acaso, por todos.
Festejemos com barulho e cartas
todas as datas que não nos pertencem
e temamos juntos o depois de amanhã.

Quem mais que o menino pobre
terá sabido fugir e, como gato, voltar
à casa em que não temos nada? Quem melhor
terá sentido o toque macio das botinas
de latinoamérica, que vendedor
terá melhor se empanturrado sem pagar
e, súbito rico, trocado milhões
por meio sanduíche? Não importa,
pois amanhã tudo retorna:
voltarão a noite, a fome, o medo e o sereno.

(haverá sereno? Não sabemos,
pois não há chuva, e nem futuro:
não é preciso olhar para o céu)

3.10.08

Nada feito

Amanhã terei energia para um balanço da coisa toda. Hoje só digo que não deu certo meu teste, como em "eles esperavam alguém que realmente soubesse o que estava fazendo". E, a não ser que algum outro currículo distribuído semana passada se transforme num telefonema, creio que não sairei de novo atrás de trabalho nessa área.

Fiz minhas contas e consigo viver com o que ganhei (o teste foi pago, óbvio) mais o que tenho - por mais esse mês e meio, e ficando novembro todo em casa de amigos.

Das coincidências

Ontem à noite saí com o ucraniano Dmitriy, ele queria saber sobre isso de associações estudantis e tal. Ele não me ligou até as oito como tinha dito, então fui pra casa e estava na cama lendo quando ele me telefona, umas nove e meia, e fala que vai prum bar com um amigo. Digo que não, que estou lendo e vou dormir, mas depois perco o sono e saio de casa pra ir num lugar que se chama Le Sympatique. Estão lá o Dmitriy, o amigo marroquino Amin e a irmã do Dmitriy, Lena. Ficamos mais um pouco e a Lena precisa ir pra trabalhar, então ela vai pra casa e logo depois nós três saímos.

O Amin quer ir no La Contrescarpe, onde o Dmitriy passa 9h de um dia normal. Ele não se opõe então vou seguindo mas quando chegamos digo que não tenho muita vontade de voltar lá, e o Amin diz que entende e então vamos para um lugarzinho libanês com sanduíches. Comemos e discutimos sobre como eu poderia passar por um marroquino mas não o Dmitriy e os dois poderiam passar por brasileiros, eles perguntam um pouco sobre raças e classes sociais no Brasil e o Amin precisa ir, então vamos com ele até a Place Monge, não sem antes passar no La Contrescarpe e conversar com o Mauro, aquele outro garçom, argentino que sonha em ser músico mas ainda tem de servir mesas mais duas horas do dia. De dentro do restaurante sai um garçom novo que não conhecemos e faz cara de curioso mas não vem conversar.

Vamos até a praça Monge e proponho ao Dmitriy ir tomar cerveja em casa por um quinto do preço de um bar. Compramos cerveja, ele diz que sua casa é mais perto e a única coisa é que sua irmã estará lá. Ele liga pra ela e falam francês, eu pergunto se sempre falam em francês entre si e ele me responde que sim, que a língua materna deles é russo mas que falam francês. Então falamos sobre a mãe que é contadora e está vindo morar com eles, e sobre como é morar com os pais e ele parece animado e dizendo que irá comprar um sofá-cama e que já calculou mesmo tudo, e eu digo que é a mãe que está vindo morar na casa deles e não o contrário.

Ficamos um pouco no banco do Boulevard Arago enquanto a Lena se prepara, pois ela acabava de sair do banho. Entramos no prédio, o apartamento é no térreo à direita, tem um banheiro e depois um só cômodo de uns 20m²: uma pequena cozinha na lateral, duas mesinhas de trabalho, muitas malas, roupa e livros, e uma escada para a cama-mezanino, onde não é nem mesmo possível ficar de joelhos. Ele me mostra os quatro metros quadrados centrais do cômodo onde ele pretende instalar o sofá-cama para a mãe, e explica que assim ela poderá ter uma cama só pra ela. Olho em volta e pergunto interessado se os dois dormem na cama-mezanino e ele diz que sim, mas que a Lena tem um namorado e quando ele precisa ele telefona e ela dorme na casa do namorado, e ela ri e responde que quando a mãe vier provavelmente ela vai dormir bem pouco em casa. Digo que o apartamento realmente é bom pelo preço e o Dmitriy me explica que demorou um pouco pra achá-lo e que dormiu na rua três dias antes disso, que passava as noites numa lanhouse, as manhãs procurando apartamento e dormia à tarde no metrô, onde é mais quente. Então quando chegou ao apartamento viu que era perfeito.

A Lena precisa trabalhar, de forma que pegamos nossas garrafas de cerveja, subimos a escada e ficamos sentados no colchão do mezanino, eles têm um gato que tem medo de mim mas está curioso e abrimos uma caixa de umas frutas que não conheço. Ele então pergunta da associação, explico como era na minha faculdade no Brasil e como é na Sorbonne, e ele me mostra que já pegou os e-mails de toda a sala e está mesmo empenhado, vai criar um grupo de e-mails ainda esta noite. Então ele pergunta sobre o Brasil, e sobre quão pobre é a população e respondo que a miséria é difícil de medir, que as pessoas no campo têm menos dinheiro mas podem até viver melhor e que nas cidades é mais complicado, mas há gente pobre que mora num lugar do tamanho do cômodo em que eles vivem, e ele pergunta se em várias pessoas e eu confirmo que em várias pessoas.

Falamos um pouco do Lula e da Revolução Laranja e ele me explica que quer aproveitar que a Ucrânia fica na Europa pra conseguir um estágio, talvez até na Comissão Européia, ele fala inglês e alemão e está tendo aulas de espanhol, e eu falo sobre como funciona a OMC e ele diz que também pensou nisso pois a Ucrânia agora está na OMC. Ele explica que não fala ucraniano muito bem e que a língua materna dele é mesmo russo então precisaria se esforçar, e eu respondo que na OMC provavelmente ele quase não falará ucraniano e que o mais importante pode ser a língua materna ser russo pois não deve haver muitos não-russos que falam tão bem assim o russo e a Rússia está em processo de acessão. Então ele diz que tudo o que quer é garantir que não trabalhará como garçom no ano que vem pois já está no terceiro ano de faculdade e não quer fazer isso a vida toda.

É tarde e o Dmitriy ainda precisa digitar a lista de e-mails dos colegas da sala, então saio, pego uma bicicleta e aproveito o horário pra voltar pra casa num atalho que é contramão. Levo pensamentos estranhos na cabeça.

2.10.08

O que eu não disse

Eu não disse que na terça, poucas horas antes de escrever a última mensagem, eu fazia entrevista num outro restaurante, o Au Père Louis, na rua Monsieur le Prince - uma rua longa como poucas por aqui, ligando o festivo Carrefour de l'Odéon à região do Panthéon e da Sorbonne. Rua estreita, cercada de pequenos prédios e sem horizonte visível, onde se concentram restaurantes japoneses e barzinhos universitários.

O turno é das 19h à meia noite (jornada de cinco horas, e não de nove - 17h às 2h), e sexta e sábado fica-se até a uma (e não até as quatro, jornada de seis horas em vez de onze). Ganha-se não tão menos assim, certamente cada hora é muito mais bem-paga. Meu teste é sexta-feira.

30.9.08

La creazione dell'uomo

Ontem, segunda-feira, devia ter sido meu último dia de trabalho no La Contrescarpe. Não foi.

Às vezes precisamos dos liberais, que nos lembram como é que as coisas são. O objetivo do meu comparecimento na segunda era digamos para ajudar, porque terça e quarta eram minhas folgas previstas e minha partida eu só a havia anunciado no domingo quando todas as cadeiras já haviam sido colocadas sobre as mesas. E evidentemente eles teriam tempo de arrumar um substituto até a quinta-feira mas não diretamente na segunda. Aí surgiu um evento muito mais interessante e importante e eu estava triste, melhor dizendo indecidido, porque tinha verdadeiramente me comprometido a dar essa ajudinha final.

Pois fui lembrado que nossas relações não se passam num meio de ajuda mútua, de confiança e respeito. Estamos, nós ao sul das Guianas, muito mais acostumados, mais confortáveis até, com a relação de autoridade, de complementaridade, e alguns usariam até palavras mais fortes. Porém aqui impera exatamente o contrário: o encontro entre induvíduos na igualdade absoluta, isto é, a ausência total de autoridade, e é claro que por causa disso o poder se apresenta na sua forma mais nua, e se exerce sem motivação nem consideranda. Autrement dit, estamos no mercado. Eu havia vendido minha força de trabalho, eles a tinham comprado - não havia nada mais que nos ligasse. Como cães que acabam de copular e, diante de um único bife, estão apenas seguindo seus instintos ao se estraçalhar pelo alimento. O mais forte vencerá, e será doloroso e comovente, mas a espécie sairá ganhando. Mas eu não, eu estava ali, preso como mesmo com os cães às vezes acontece, e como que fisicamente impedido de avançar contra o meu parceiro de há tão pouco, tão pouco. E, evidentemente, essa fraqueza é tão indesejável, do ponto de vista da coletividade, quanto ter as patinhas dianteiras atrofiadas.

A diferença é que, ao contrário da atrofia física, a atrofia moral - e me desculpem se sôo oitocentista - é remediável. Pois foi aí que meu liberal particular me abriu os olhos: finda a relação de colaboração, eu é que tinha o poder (vous avez le droit, eles dizem) de simplesmente não aparecer. E foi o que fiz. Não sem alguns deslizes: telefonar avisando, ainda uma medida de cortesia, mas principalmente inventar ao telefone uma desculpa de saúde, um braço distendido e a impossibilidade de ajudar. Traindo o quanto de cana-de-açúcar nosotros levamos en la sangre.

Hoje, passei ao lado e cobri a cabeça para não ser reconhecido.

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28.9.08

Dias difíceis

Ontem foi um dia difícil. Na verdade, ia entrar às 10 da noite e ficar no restaurante até as quatro da manhã. Acabei não fazendo nada o dia todo, um pouco por estar imprestável, um pouco porque é muito fácil passar o dia aprendendo notícias - o conhecimento com data de validade.

Mas aí às 16h45 recebi um telefonema dizendo pra ir pra lá, que a norueguesinha que ia dividir comigo tinha cancelado e que eu deveria ir às 17h. Estava indo lavar roupa, disse que não podia chegar antes das 18h mas que iria o mais rápido possível. Lavei minha roupa e fui. A noite foi longuíssima - quer dizer, deve ter havido momentos de interesse mas tudo de que me lembro é de uma imensa vontade de ir embora e da sensação de tempo, esse esperar tão evidente na etimologia comparada do garçom, preenchendo todos os poros do corpo e deixando todos os acidentes, as reclamações tão francesas, a louça e talheres cantando, o dinheiro entrando e saindo, tudo como num volume mais baixo - até a volta pra casa às 4h30, quando cruzei a Praça do Panthéon e notei que estava inconscientemente tentando desviar os sapatos dos paralelepípedos mais íngremes, que pareciam ignorar a sola de couro (ou borracha, nunca soube) e atingir direto esses calos pouco familiares não do movimento mas da estática, aguçando a sensibilidade como a penumbra ou o álcool, calos que floresciam ainda jovens e expunham, como numa fratura, a vida que continua a correr.

Acordei com dificuldade e fui para a minha importante reunião de domingo: visitar Chartres com um amigo que não sei em que cidade verei novamente. Pegamos correndo o trem das 9h30, dormi o percurso todo, rodamos o centro velho todo da cidade e voltamos num trem que eu achei que era às 15h30 e na verdade era às 15h26. Por sorte ele não sabia dessa pequena diferença, ou teria ficado desesperado e teríamos perdido minutos importantes.

Chartres em si é como outras cidades históricas européias. Me interessou mais pela vida quotidiana da gente dali, que tem de se equilibrar entre aderir às modas tão pouco inventivas saídas da cabeça de artistas publicitários, embalando corpos estéreis e sendo difundidas no ar que respiramos, e habitar um cenário de 300 a 700 anos de idade, do qual provavelmente pelo menos metade da sua família depende pra sobreviver. Pensem então uma Campos do Jordão onde o ar cheirasse menos a plástico, gesso e gelo seco, uma cidade com vida própria a qual se pode espiar, sem a certeza de que todos os momentos e surpresas foram cuidadosamente planejados numa sala de paredes brancas.

Dormi no trem da volta, corri pra casa, me troquei e cheguei ao La Contrescarpe (ele se chama assim, meu trabalho) umas 17h15. Estavam todos lá, ninguém reclamou e peguei mesas. A noite passou rápido e - concluo agora - evidentemente a tudo a gente acaba se acostumando. No fim da jornada, depois da meia noite, ganhei gorjetas incríveis, um escocês foi com a minha cara e me deu sete euros, um outro dois, três e depois mais dois.

Quando fiz a conta, a notícia: faltavam dez euros. Simples assim: entre o que eu devia ter e o que eu tinha, a sobra era de dez euros. Como eu tinha trazido vinte em moedas pequenas, tinha dez a menos do que quando cheguei. Várias contas feitas, descobrimos que eu tinha perdido uma nota de cartão de dez euros, ou seja, empatei. Evidentementente, devo ter perdido mais que um tíquete de cartão. Foi aí que tomei a decisão.

Depois das duas, sentamos pra comer todos, e foi o momento mais intimista que vivi ali, como num daqueles filmes tão movimentados como uma criança pedindo atenção mas em que o melhor momento é o mais despretensioso, onde os heróis deixam de ser heróis, as princesas deixam de ser princesas e bem, os servos nunca deixam de ser servos não é mesmo?, mas onde - eu disse onde - todas essas relações sociais parecem ter sido suspensas por um instante, todos parecem depender igualmente uns dos outros e poder se servir de porções iguais do coelho sobre a fogueira. (Pra que as relações sociais sejam suspensas com coerência, um filme precisa fazer crer que a própria sociedade está em suspenso - em stand by - naquele momento.)

Então, depois de algumas canções e quando todos haviam ido embora menos o gerente, a garçonete amiga dele e eu, ele levantou. Eu teria folga terça e quarta. E eu disse que talvez não voltasse na quinta, que não ia esperar perder duzentos euros pra parar. (E vejam que aí mostro uma habilidade para o cassino ou para a bolsa que não se apresenta quando o jogo vai além da superfície.) E ele me diz que eu é que tenho que escolher, que isso acontece com todos os novatos etc., e eu digo que vou pensar mas em princípio segunda-feira (isto é, daqui a doze horas) é meu último dia.

Voltamos os três pra casa pelo mesmo caminho. Eu tento lhes indicar bicicletas para alugar, mas nenhuma estação tem bicicletas que funcionem. Nos despedimos e volto para o meu quarto no sexto andar.

***

Sinais de velhice: depois de seis dias, mesmo fora da religião o terceiro mendamento (quarto?) parece sábio o suficiente. Não serei o primeiro a não voltar do descanso. Às vezes é necessário abdicar de muitas alternativas e guardar apenas a essencial.

Sinal de juventude: devo retornar amanhã uma ligação de alguém que recebeu meu CV e me ligou ontem à tarde. Se forem menos de 45 horas por semana, quem sabe?

26.9.08

Mais

Entrada: 22h.
Saída:4h30.
Total de caixa: 285,40 euros.
Total de gorjeta: 21,96 euros.

***

Meu dia começou assim: acordei às 9h30 da manhã depois de ter dormido umas 5 ou 6 horas, comi meia baguete tradição (1,05 euros cada) com manteiga. Fui pegar o vinho e o espumante que tínhamos comprado pra hoje, quando iam ser entregues as notas do Master. Fomos pra sala com isso, a Daphnée já estava com salgadinhos e toalhinhas vendo a sala. Empurramos cadeiras e mesas pra fora. Eram 10h3à e ia começar a reunião de recepção da nova turma, então saímos correndo pra nos apresentarmos, que éramos da associação de estudantes e tal. A coordenadora não se lembrava do meu nome. Dissemos um oi e voltamos pra espalhar salgadinhos pelas salas e abrir os vinhos (ficamos discutindo se se devia ou não abrir os espumantes antes de as pessoas chegarem, até que alguém cansou e resolveu abrir). Esperamos um pouco e as pessoas da nossa turma foram chegando, todos vestidos como estudantes que não estão acostumados a terem que parecer chiques se vestem quando têm que parecer chiques.

Então finalmente acabou a reunião e vieram os novos estudantes, querendo parecer folhas em branco como alguém disse uma vez e nos pedindo para formatá-los para se darem bem no novo ano. Então a professora leu as notas, a que não lembrava meu nome, e a russa e a americana tinham sido reprovadas e eu tinha tido a melhor nota - não tem duas formas de dizer isso - fora o luxemburguês que já tinha tido sua nota há muito tempo e estava em Nova Iorque. Era uma nota que eles arredondaram pra cima, 15/20, e assim eu ganhava uma menção especial, "bien". A russa e a americana tinham pedido pra eu me certificar de que realmente elas tinham sido reprovadas e enviar e-mails pra elas, pois elas tinham ido embora antes da reunião.

Então bebemos champanhe e vinho mas sobraram muitas garrafas, tentamos vender pro pessoal da outra turma mas eles já tinham as próprias, então decidimos ir almoçar num restaurante japonês. Deixei 15 euros, ou seja, um pouco menos do que minhas gorjetas de ontem (a cerveja chinesa custou 5 euros). Voltamos pegar as garrafas e trazê-las para o meu apartamento, e eu fiquei de dar uma festa pros novos alunos ainda em outubro com elas. Eu, o Noël, o Manuel e a Sonia, eles todos franceses, tomamos café aqui, depois a Sonia saiu pra uma reunião e o Manuel mostrou pra mim e pro Noël clipes de rap com letras sexuais e degradantes para as mulheres. O Noël é gay. Os dois foram embora e eu enviei os e-mails pra russa e pra americana, e tentei dormir mas consegui pouco só, talvez por causa do café. Li algumas coisas, escrevi pra amigos e saí pra uma comemoração onde eu não ficaria muito tempo, pois eram nove e às dez eu tinha que estar no restaurante - onde parece que o gerente iraniano estaria esta vez, me diziam que ele que não bebe e não fuma e fica brigando com as pessoas. Tomei apenas uma cerveja pequena na comemoração (3 euros).

Fui até o restaurante e o iraniano ficou tentando me ensinar as coisas, eu já sabia muitas pois estava no meu terceiro dia mas prestava muita atenção pois era disso que ele precisava. Era sexta-feira e as pessoas estavam generosas, eu não tinha muitas moedas então descobri que quando você pergunta se a pessoa tem vinte centavos normalmente ela te deixa ficar com o troco. O tempo passou rápido pra caramba, fechamos o terraço às duas e então eu fui pra cozinha lavar louça, copos e talheres, e a Ewelina me sacaneou de novo e perguntou se eu não tinha máquina de lavar louça em casa, mas eu respondi que eu lavo a louça na mão.

Limpamos vários utensílios de cozinha, tenho certeza que se eles soubessem o quanto eu ignoro a utilidade daqueles utensílios me mandariam embora na hora. Então me disseram que me pagariam os dois últimos dias e mais a meia jornada de hoje, e esse então fica sendo o meu primeiro salário nesse ramo - fora quando eu tinha doze anos e fui pra búzios na casa de um amigo dos meus pais, e o pai desse amigo era quem morava em Búzios e ele tinha uma fábrica de gelo. Eu e os netos dele passamos duas horas carregando gelo e ganhamos cinco reais cada um. Eu devia ter doze anos, mesmo, ou até um pouco mais.

Então o iraniano (ele se chama Hussein, talvez seja iraquiano) me disse que eu não ia poder folgar domingo, pois já haviam pegado esse dia e eu expliquei que quando combinamos ele disse que seriam domingo e segunda minhas folgas, e que eu havia marcado uma coisa importante pra domingo (é verdade). Ele me disse que não ia ter jeito mas que eu podia falar com o argentino pra trocarmos. Não consegui falar com o argentino.

Limpamos tudo, recolhemos o terraço e voltei pra casa. Tenho a minha condição (o primeiro salário) e um bom motivo (a troca arbitrária do meu dia de folga, do qual eu precisarei) pra não aparecer mais, ou então reclamar, talvez até criar uma briga como se faz na França e sair por causa disso. Porém a verdade é que a experiência está me agradando, o dinheiro não é mau (pode-se viver a vida toda assim, o Dmitriy me explicou logo de cara) e acho que três dias é tão tão pouco.

Preciso ver se meu programa de domingo é maleável. Se não for, podemos ter problemas.

Uma noite interessante

Vai, vocês acharam que eu não ia voltar, não é mesmo? Pois pus pra mim mesmo este point d'honneur. Fico pelo menos até sair o primeiro salário. Depois fiz minhas contas, e se eu sair deste apartamento no fim de outubro, economizo o suficiente pra viajar em novembro e até um pouco em dezembro (coisas estranhas estão acontecendo).

Então ontem voltei lá às 5 da tarde. Meu companheiro do dia se chamava Mauro e era argentino (o Dmitriy de folga nas quintas). O Jean, garçom francês, e até o chefe estavam menos intratáveis, e gosto cada vez mais dos marroquinos, banglas e mauritanianos da cozinha. O problema é mesmo a natureza do trabalho, o eterno permanecer de pé, as meias horas que se arrastam nos ponteiros do relógio da praça, a bandeja que vai se tornando mais e mais pesada, e finalmente o chegar em casa com a sensação de ter simultaneamente feito uma prova de 5 horas e jogado uma partida de rugby.

Mas ontem não foi tão mau. Já consigo fazer as coisas sozinho. Não foi tão penoso como o primeiro dia. E principalmente, apareceu lá pelas nove de uma noite meio vazia uma mesa de brasileiros bahianos, que foram praticamente meu único trabalho até a uma da manhã. Consumindo, como convêm aos BRICs, como uma dúzia de franceses cada um. E eu tendo que agradar os bons clientes sem que os chefes percebessem, com uma manteiga extra, trocando acompanhamentos, levando palitos no fim da refeição e emprestando o celular pra pegarem táxi.

Obviamente, já fui descoberto, tanto pelos brasileiros ("o que você está fazendo aqui?") quanto pela polonesa Ewelina, aquela que não fala muito ("pergunta quantas vezes ele varreu o chão na vida"). Apareceu também uma norueguesa gracinha, dessas meninas que pegam a primeira oportunidade sem nexo pra falar que têm namorado. Gosto do tipo. E ela pegou metade do "meu" horário hoje, que ia ser de onze horas. Entro às dez e saio às quatro da manhã. 

No fim da noite, ainda consegui ver uns clientes que não queriam pagar discutindo no caixa, a polícia que chegou em exatamente três minutos depois de o patrão telefonar, uns sete à paisana. O líder deles deu pros caras (um casal e um amigo) a alternativa entre pagar e ir se explicar na delegacia, e, depois de eles pagarem, anunciou que iam pra delegacia assim mesmo (por ivresse publique, uma infração que aparentemente fica na manga da polícia pra quando alguém incomoda os outros). Isso uma e meia da manhã, logo antes de fechar.

Cheguei em casa cansado o suficiente pra tomar uma sopa e dormir. E talvez o mais importante: com gorjetas. E é preciso ser específico, pois, como alguém lembrou outro dia (comentando Balzac?), falar em dinheiro sem falar em valores não é falar em dinheiro. No primeiro dia, minha conta deu 601 euros, e eu tinha aproximadamente 602 no bolso. Ou seja, voltei pra casa tão pobre quanto saí. Ontem, foram 594 de giro, e contando depois as moedas que me sobraram, voltei pra casa com 20 euros a mais. Pagará a comemoração de hoje (até às 22h), pois tivemos as notas do meu Master, que já parecia tão longe. Verdade: os bahianos devem ter sido responáveis, sozinhos, por uns 15 desses 20 euros (consumiram no total 286 euros, pagaram 300). Mas sei que dá pra pegar pelo menos uma mesa dessas por semana, e virar o brasileiro de referência. Apesar de que dificilmente ficarei tantas semanas assim, lembro bem desse trecho da Fogueira das Vaidades: 
"You see, Daddy didn't bake the cake, and Daddy isn't the one who gets to eat it. But he gets to slice the cake and hand it out. And when he does, little golden crumbs fall off the cake. And Daddy gets to eat those."
Ou, traduzindo, em auto-ajuda: nada como carregar bandejas de verdade um pouco na vida.

24.9.08

O primeiro dia

Estou destruído, mas preciso deixar satisfações. Porque daqui a alguns anos será fácil: terei sido garçom em Paris, que é tão romântico, e terei fotos (ah, tirarei fotos!) e até talvez boas histórias pra contar. Mas neste momento a vontade é não voltar mais naquele lugar.

Em termos financeiros, sejamos objetivos: sou explorado. Trabalhei 9 horas e meia, isto é, mais do que o permitido no mundo ocidental. Na sexta e no sábado, serão 11 horas e meia. Domingo e segunda não trabalho, mas isso não significa que o resto não vá somar 61 horas semanais. Pondo contudo em perspectiva: o ganho, 60 euros diários, é acompanhado de um prato do lugar (digamos, dez euros), o que dá aí uns 150 reais por dia, ou seja: em três noites de trabalho ganho um salário mínimo do Brasil. E há as gorjetas - mas hoje, por exemplo, fazendo as contas me sobrou um euro e meio. Ou seja, você é o empregado mas também é um pouco o comerciante: se enganou, é no seu bolso que pesa.

Bem, fiz um amigo que se chama Dmitri e é ucraniano: fala inglês e alemão, um pouco de espanhol, morou na Suíça e Alemanha e está cursando estudos europeus em Paris. Quer fazer um estágio ano que vem na Comissão Européia. Somos colegas de falta de sentido, embora estejamos circunstancialmente precisando da grana.

As outras pessoas são o Jean, um francês que dá raiva porque é garçom igual a gente mas se acha muito importante. Uma menina do leste europeu cujos nome e nacionalidade ainda são incógnita. E o gerente, o Christian, que se esmera em ser intratável. Na cozinha, o chef (chamamos ele de "chef") e as baixas nacionalidades: marroquino e mauritaniano. Lavando pratos, copos etc. Parece que amanhã voltará um argentino (garçom também) que será o Dmitri quando o Dmitri não estiver lá (amanhã, por exemplo).

Coisas estranhas acontecem, como o seu olhar pra meio sanduíche e muitas batatas deixadas num prato quando já é mais de meia noite e você não como desde à tarde. A raiva compartilhada com os cliente gringos pelos hábitos franceses (por exemplo, não há cinzeiros no restaurante: não é permitido ser civilizado). A previsível raiva de um grupo de brasileiros que fica batendo papo, chama conversa, pergunta de você e no fim vai embora com um abraço, protestos de estima e admiração e promessas de amor eterno, e nem um centavo de gorjeta. A vontade de se sentar depois de 8 horas de pé segurando uma bandeja. A reprimenda quando você senta (là on s'assoit pas, monsieur). O fechar o lugar depois de tudo, uma noite importante pra alguns casais, monótona pra outros, qualquer pra um grupo de amigos, fantástica pra uns turistas com câmeras profissionais. O carregar as mesas do terraço pra dentro, e então sacar por que há só uma mulher na equipe (são tão pesadas!). E o voltar pra casa acabado, e desejando apenas dar uma idéia cansada do que se passa e ir dormir.

Tenho reunião da associação de estudantes em exatamente 8 horas. Às 5, estarei lá de novo, ou seja: ao que parece, fui aceito.

23.9.08

Dia 6

Bem, eu sabia que devia ter escrito pra vocês no dia 3. O que aconteceu foi que nesse dia, quando cheguei em casa, havia questões mais importantes esperando pra serem resolvidas. E, como vocês claro sabem e compreendem, na vida é preciso ter prioridades.

Tento reconstituir (reencarnar, como alguém disse numa prova e foi considerado um insulto à língua): no dia 3 estava meio mal. Ninguém havia me telefonado apesar dos onze currículos distribuídos com efusivos apertos de mão. Então, e apesar de a teoria da equivalência das janelas ter se mostrado mais forte do que nunca, eu estava meio mal. Porque havia percorrido muitos outros bares e restaurantes e só parecia haver negativas, como se as portas da lei estivessem fechadas para mim exceto se eu mostrasse toda a minha ficha corrida nobre e enobrecedora. E havia inclusive sido sacaneado por um gerente, não pelo meu francês ruim mas vejam vocês pelo meu francês coloquial demais, street demais - isso deveria ser de alguma forma motivo de orgulho, não? Pois não foi. Entrei no personagem por assim dizer, eu pensava, eu podia precisar disso, e depois pensava na minha conta e dizia, quem estou querendo enganar?, eu preciso disso, e depois pensava nas minhas mil outras opções etc etc.

Ainda por cima uma amiga francesa tinha sugerido que eu fizesse uma carta de motivação, quer dizer, uma folha A4 em que você explica em uns poucos parágrafos por que sempre quis ser garçom, é a pessoa perfeita para o trabalho e trabalhar na [_instert company name_] realizará todos os seus sonhos e contribuirá decisivamente para o sucesso do bar ou restaurante-alvo. Acrescentou que eles acham legal quando a carta é manuscrita.

Evidentemente, isso havia tocado num ponto sensível. Quer dizer, uma coisa é defender empresas de tabaco contra pessoas que estão no leito de morte, outra coisa é sentar durante duas horas e redigir manualmente cartinhas individualizadas para bares turísticos explicando que nada te faria mais feliz do que segurar uma bandeja 35 horas por semana e ser compreensivo com pessoas que não falam nenhuma língua conhecida. Era subserviência demais. Contra os meus princípios.

E ainda, ainda uma grande amiga e minha irmã, minha própria irmã, já na noite do dia 3 me diziam pra ceder, pra escrever as tais cartinhas que não tinha nada demais. Realmente, por exemplo: o seu banco não te manda cartões de Natal personalizados?, às vezes assinados de próprio punho pelo seu gerente? É semelhante: é preciso saber como as coisas funcionam.

Isso foi o dia 3. E a melhor dica que tive, aparentemente, foi a de dizer a verdade. Que quero sentir qual que é, feel the thrill, just for the kicks. Porque foi o que fiz hoje. Ia naquela pracinha da Rue Mouffetard onde tem a Haagen-Dasz (?, não vou googlear) beber com um amigo que encontrei vezes demais nos últimos dias pra ser coincidência, ele atrasa ainda por cima, e vagando um pouco vejo uma placa: "CHERCHE : SERVEUR OU SERVEUSE - S'ADDRESSER À LA CAISSE".

Vou até o caixa e peço informações, digo que não estava lá pra isso e não tenho nenhum CV comigo mas que sim, que moro perto e posso ir buscar. Ando até em casa, pego 3 cópias pro caso de não dar certo e volto pro lugar. Explico, como sugereiram, a verdade: que acabei de terminar um Master, que sou gringo e que vou passar os próximos meses lendo no meu quarto pra minha tese, e que gostaria de ter um trabalho à noite (omito que ele durará exatamente um mês), pra falar francês do dia-a-dia e ganhar um pouco de dinheiro.

O gerente pergunta se sei trabalhar com bandeja. Pego na mão uma que está ao lado. Ele me pergunta se já fiz isso, e decido dizer a verdade: que trabalhávamos mais com copos individuais, como num pub. Ele diz que é pra saber se precisa me formar ou não. São 60 euros por noite, as gorjetas são minhas, chega-se às 16h30, come-se alguma coisa e trabalha-se direto até às 2h, sextas e sábados até às 4h. É preciso estar de camisa branca, gravata preta, calça preta e sapato preto. Importante ter uma pochete (na verdade, achei que era um avental, descobri depois que era uma pochete). Ele me empresta se não tiver. Farei um dia de teste, e depois vemos.

Saio com um papelzinho com as indicações e vou encontrar umas pessoas que nem conheço. Estou contente demais com essa coisa estúpida e tenho que me esforçar pra não ser inconveniente. Ficar feliz por trabalhar em Genebra, na OMC, realizando estudos fantásticos e negociando grandes somas internacionais, seria uma coisa. Ficar feliz por ser aceito como garçom, pra trabalhar mais que o limite legal e receber o salário mínimo, sem direitos, é um pouco outra.

Mas ah, como me alegra. Nem que seja só o dia de prova - mas me esforçarei tanto que não poderão me recusar! Vocês vão ver.

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17.9.08

O que é turismo

Pois é que hoje de manhã acordei e finalmente notei que estou recuperado das duas semanas sem dormir, das 178 páginas de reflexão sobre sanções internacionais que abandonei sem esgotar o assunto por falta de tempo e da tensão de não ter ido tão longe quanto gostaria. E lembrei também do Caçador que espreita espalhado em folhas A4 nestes 12,60m² de lucidez e em etéreas mensagens de e-mail de mim pra mim mesmo, que se morro ninguém nunca saberá a senha (exceto por meus pais, que terão sem dúvida o bom-senso de apagar tudo, há um motivo pelo qual coisas ficam sem ser publicadas e não é porque o autor queria esconder o que de melhor ele tinha).

Mas, mais importante, lembrei da minha conta bancária que está pra emitir o seu último suspiro de dinheiro ganho sentado entre cristal líquido, carpete, cafezinhos grátis e árvores desmembradas, caindo a cada segundo e se transformando em share pledge agreements, em convocações de assembléia geral extraordinária, em termos de quitação, poemas e quem sabe se bilhetinhos de amor. E verifiquei os últimos desastres excitantes sobre o Lehman Brothers e o Northern Rock e mais tantos outros nomes que se dá à rede de árvores desmembradas guardadas em arquivos cem ou duzentas vezes mais espaçosos que o lugar que habito, sufocadas no terceiro subsolo de algum prédio, protegidas pelo solo rochoso de Manhattan, por barras de ferro e trancas inacessíveis para mãos humanas, outorgando plenos poderes a rapazes com ternos de dois botões, gravatas de 7cm de espessura, sapatos de bico fino e pomada no cabelo para comprar e vender ienes de fevereiro de 2009, safras agrícolas da Geórgia em 2014 e tufões destruidores das casas dos cubanos em 2023, quando há muito a estátua de Fidel terá sido levada para o Metropolitan.

Pensei nas minhas opções, em como falar com o proprietário do apartamento sobre a saída definitiva, nos dias que seria necessário para realizar algumas transações e nos pulsos telefônicos que resolveriam todos os problemas, e tomei a única atitude razoável nas circunstâncias. Removi do meu curriculum vitae - do curso da minha vida, diria um latinista - três anos sentado redigindo contratos internacionais, seis meses atuando junto ao Poder Judiciário do Estado de São Paulo, 250 páginas de teoria jurídica, cargos políticos estudantis, um prêmio universitário internacional e dois artigos publicados. Em vez, coloquei experiências de verão em bares e restaurantes que chamei Casa da Cachaça e Copacabana Sucos. Imprimi dez cópias no mesmo lugar onde há uma semana imprimi mais de 1200 páginas e onde há um ano xerocopio reflexões de renomados teóricos de tantas áreas espalhados pelo mundo, para colori-las em verde, amarelo e laranja. Montei numa bicicleta às 21h00 de Paris numa quarta-feira e fiz a ronda dos bares da cidade onde tantas vezes já estive como consumidor, repetindo como uma antiga fórmula o mantra: "Bonsoir, est-ce que vous auriez par hasard besoin de quelqu'un pour travailler dans le bar?, comme serveur ou comme barman?", e daí começando diálogos mais ou menos frutíferos que podiam terminar numa recusa expressa, numa confissão de que ali trabalha apenas a família do patrão, na informação de que o patrão só contrata meninas ou num aperto de mão e promessa de ligação no dia seguinte.

E caminhava pela rua pensando na música que diz que as pessoas elas não entendem, as namoradas elas não entendem, nas espaçonaves eles não vão entender e eu então nunca vou entender, e naquele trecho fantástico do On The Road em que ele fala assim:

"We bent down and began picking cotton. It was beautiful. Across the field were the tents, and beyond them the brown cottonfields that stretched out of sight to the brown arroyo foothills and then the snow-capped Sierras in the morning air. This was so much better than washing dishes South Main Street. But I knew nothing about picking cotton. I spent too much time disengaging the whiteball from crackly bed; the others did it in one flick. Moreover, fingertips began to bleed; I needed gloves, or more experience. There was an old Negro couple in the field with us. They picked cotton with the same God-blessed patience the grandfathers had practiced in ante-bellum Alabama; they moved right along their rows, bent and blue, and their bag increased. My back began to ache. But it was beautiful kneeling and hiding in that earth. If I felt like resting I did, my face on the pillow of brown moist earth. Birds an accompaniment. I thought I had found my life’s work.

(...)

Every day I earned approximately a dollar and a half. It was just enough to buy groceries in the evening on the bicycle. The days rolled by. I forgot all about the East and all about Dean and Carlo and the bloody road. Johnny and I played all the time; he liked me to throw him up in the air and down in the bed. Terry sat mending clothes. I was a man of the earth, precisely as I had dreamed I would be, in Paterson. There was talk that Terry’s husband was back in Sabinal and out for me; I was ready for him. One night the Okies went mad in the roadhouse and tied a man to a tree and beat him to a pulp with sticks. I was asleep at the time and only heard about it. From then on I carried a big stick with me in the tent in case they got the idea we Mexicans were fouling up their trailer camp. They thought I was a Mexican, of course; and in a way I am."
E era apenas isso, não há ninguém para entender e eles pensarão que eu sou um mexicano, e de certa forma eu sou é claro. Mas de outra forma não, não é mesmo? Pois acima dos lagos, acima dos vales, das montanhas, dos bosques, das nuvens, dos mares, há um futuro onde a máquina do mundo se abre majestosa e circunspecta, chamando-me para seu reino augusto afinal sumetido à vista humana, e nesse futuro não serei um mexicano nem um marroquino nem um maliano. Por isso é tão importante dizer que sim, que trabalho em período integral se necessário e até mais, que não preciso de papéis nem nada e que posso ficar inclusive até mais tarde. E tenho sorte, pois meu grande trunfo são exames que fiz para pedir entrada em paraísos educacionais que custam o dobro do que ganharei.

Então, depois de duas horas realizando essa atividade de soltura no mundo, voltei para minha casa que fica na Montanha de Santa Genoveva, entre a cidade, com as suas agitações e aventuras, e o céu, em que as estrelas pestanejam. É preciso tentar, ao menos uma vez, enviar cartas a esmo e verificar se há efetivamente alguém do outro lado, em vez de apenas bater a senha que vem sendo transmitida há gerações. É preciso não saber a senha e dizê-la mesmo assim, ainda que nos seja proibido, ao final, entrar no mundo de Alice ("If you men only knew!") pois nunca havíamos sido convidados.

Se tudo der certo então, poderei em breve expor em quê ser advogado difere de ser garçom. Aguardem.

1.9.08

Eu preciso

Fiz até voto de silêncio e etc, mas preciso explicar isso. Imaginem isto escrito num pacote de queijo ralado:

"SEU 2° QUEIJO 100% REEMBOLSADO

Para obter seu reembolso (sobre a base do mais barato dos dois produtos, no limite de €4,50), você só precisa comprar simultaneament dois queijos ralados Entremont portadores desta oferta (idênticos ou não) e enviar em 21 dias da data da sua compra (afora domingos e feriados) : seus sobrenome, nome e endereço sobre papel avulso, os dados de sua conta bancária os códigos de barra recortados, o original da nota fiscal (data e quantidade de compra dos dois produtos comprados) e os dois anúncios de oferta promocional presentes nas embalagens (a recortar). Enviar tudo em envelope com os selos correspondentes o mais tardar em 24.12..08 à meia noite (selo dos Correios fazendo fé) a :

ENTREMONT 2° ralado 100% reembolsado
CEDEX 2867 - 99286 PARIS CONCOURS

Reembolso exclusivamente por depósito bancário e em 4 semanas. Custos do envio não reembolsados. Todo pedido ilegível, incompleto, enviado após a data ou não respeitando as condiões da oferta será considerado nulo. 1 único reembolso por família (mesmo sobrenome, mesmo endereço, mesma conta corrente). Oferta reservada à França metropolitana (Córsega incluída)."

Esse é o país em que eu estou morando, entenderam?

25.8.08

Outros

Eu estive quieto quieto, não é? É que andamos ocupados com coisas sem a menor importância.
***
Il est hors de doute, dit Robertson Smith, que chaque sacrifice était primitivement un sacrifice collectif du clan et que la mise à mort de la victime était un acte défendu à l'individu et qui n'était justifié que losque la tribu en assumait la responsabilité.
(...)
On sait qu'on accomplit une action qui est interdite à chacun individuellement, mais qui est justifiée dès l'instant où tous y prennent part ; personne n'a d'ailleurs le droit de s'y soustraire.
***
E, afinal de contas, nem é uma epígrafe tão boa. talvez essa fosse melhor:
L'action accomplie, l'animal tué est pleuré et regretté. (...) Mais ce deuil est suivi de la fête la plus bruyante et la plus joyeuse, avec déchaînement de tous les instincts et acceptation de tous les satisfactions. Et ici nous entrevoyons sans peine la nature, l'essence même de la fête.
Une fête est un excès permis, voire ordonné, une violation solennelle d'un interdit. Ce n'est pas parce qu'ils se trouvent, en vertu d'une prescription, joyeusement disposés que les hommes commettent des excès : l'excès fait partie de la nature même de la fête ;
***
Daí pra Blake estamos num pulo. Mas não pronunciarei.

15.8.08

Tanto esforço

E as vezes parece mesmo que é demais, não é?

13.8.08

Fragmento

"OK, so who's the arsehole now?" Veja como a pergunta pode ser reinterpretada, como se fôssemos crianças sentadas em roda girando uma garrafa, "Ok, so who's the arsehole now?" Sei que algo em você que grita quer apontar os culpados de uma vez por todas, então me desculpe por isso querida - mas o assassino era esse três rodadas atrás, e o detetive agora é apenas quem estiver com o papelzinho marcado com um D. Mas aí já parei de falar com você e estou escrevendo um post.

É uma forma de post-nuclear thinking, talvez, mas nunca acreditei em culpados. A Suzane von R.ichthofen não é um monstro, o cara que atirou a filha da janela não é um monstro, o de-que-não-se-fala (leia Totem e Tabu, ah, leia...) não é um monstro e você não é um monstro. Pode ser, é claro, que eu seja o único diabinho, justificando toda a carnificina em nome de uma certa concepção de alma - mas veja como isso me aproxima tanto tanto do perdão universal, que todos sabemos que é a característica de um único ser no universo. Porém eu não diria isso tampouco, e prefiro ficar com Wilde : "We are all in the gutter, but some of us are looking at the stars".

12.8.08

Casanova

Acabo de ver um filme chamado Memórias de Casanova, ou só Casanova, vocês sabem como são essas coisas. E preciso dizer - só escrevo aqui coisas que preciso dizer - que terminei o filme revoltado, esbravejando pra pessoas intrigadas com atitude tão bizarra diante de um filme bobo.

Meu problema com o filme era apenas o enredo. Achei o figurino adequado, as intepretações críveis e o cenário bem-construído (afora uma ou outra marcas de avião no céu veneziano do século XVIII, quando não se arava ainda o céu). Apenas o enredo, qual seja, segundo a wikipedia:

"Casanova, pela primeira vez na vida, encontra uma mulher que o rejeita. Ela é a bela veneziana Francesca Bruni e, para conquistá-la, Casanova usa os mais variados disfarces e estratégias, colocando em jogo sua reputação e até mesmo a sua vida." (devo dizer que existe um filme do Fellini e que obviamente não é o que interessa)
Vocês entenderam então? Casanova, o libertino, Casanova, o maior dos sedutores, Casanova, o destruidor de corações (não de famílias, nessa época não tinha dessas em Veneza), se apaixona, que é a forma polida de dizer: encontra uma mulher que o rejeita (não estou igualando as duas coisas, por favor - mirem mais embaixo). E então faz o possível e o impossível para tê-la, abdica dos seus amores e até de deflorar a virgem que lha daria uma aparência digna e lhe salvaria o pescoço da inquisição.

Me corrijam aqui todos os semioticistas, todos os psicanalistas, todos os filósofos e todos os lógicos se eu estiver errado: o Casanova hollywoodiano deixa de fruir o presente e é dominado pelo amor Shakespeariano, aquela abdicação do presente pela fruição do futuro (que, como o inglesinho apontou, identifica-se com a vida eterna e portanto com a morte). Permanece perseguido, vejam bem, como se houvesse uma continuidade entre uma coisa e outra.

Mas não há. Há é a grande inversão do mito, que passa a propagar assim : o maior dos conquistadores não era um conquistador, mas no fundo um infeliz frustrado ; a fruição dos seus desejos ainda não é a felicidade ; a verdadeira felicidade está em outro lugar, no inatingível, ali, e não no que você está fazendo agora ; é preciso estar frustrado, há algo além pelo que vale a pena lutar, usar todos os disfarces e estratégias ; cuidado, pois pode não ser pra sempre e, se não for pra sempre, retroativamente isso significa que não deu certo.

Não é ainda que o libertador se converteu na prisão. É mais primitivo: a prisão se apresentando com um cartão onde se lê, "Libertador".

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Uma vez o Blattner me disse sobre a Montanha Mágica que o sujeito estava deitado no quarto da amada vendo entrar a luz da manhã, e que ele então pensava que aquilo era apenas a ponta do enorme iceberg da felicidade, quando na verdade aquele momento era a própria felicidade. É isso. O filme nos treina para procurar o iceberg, e nos deixa muito inquietos quando não conseguimos nem mesmo vê-lo, pois estamos ocupados demais admirando a ponta. Que ao menos tirássemos fotos da ponta, para poder fruí-la pra sempre.

Vi também admirável mundo novo outro dia em filme, a mesma mensagem : na verdade o Amor existe e os seres do futuro é que foram privados dele, até de Shakespeare, ah Shakespeare que nos diz tanto. Nosso mundo, e não o deles, é que é o único possível, diz o filme. Espero que o livro não seja assim - 1984 certamente não é, embora tentem fazer dele um apaixonado tratado de anti-stalinismo.

O saldo, que apresento como a novidade da temporada : Hollywood é uma máquina de pegar histórias e transformá-las em comerciais da tesoura do Mickey e da Minnie, lembram dela? De te garantir que existe um mundo do depois-de-conseguir, um mundo muito melhor, onde finalmente você estará a salvo, sem dor e sem remorso e ao lado dos que te amam, onde tem prostitutas bonitas para a gente namorar.

Sinto dizer, mas esse mundo tem nome, e é o Além. Chegar a ele demanda a morte.